sexta-feira, 27 de julho de 2018

Carta a um ex-aluno




Em 1994 José Valente publicou este texto no jornal Público.
Tropecei nele e copiei-o, imprimindo-o em formato A3 e afixando-o na escola onde então lecionava num painel por onde todos passavam.
Enquanto lá estive, muita coisa entrou e saiu daquele painel, menos este desabafo, que se foi mantendo.
Hoje apeteceu-me recordá-lo, com outra imagem. Há dias assim.


Carta a um ex-aluno
Sem que verdadeiramente o tivesses notado, entre a boémia e as lutas estudantis, voaram os cinco anos que te separavam do primeiro emprego. Prolongaste habilmente a adolescência até onde te foi possível. Até hoje. Subitamente descobres que se tornou inconveniente o protesto, arriscada a crítica, imperdoável a irreverência. Há quem ache que crescer é isso.
Fica desde já decretado que usarás gravata. É natural: são cada vez mais as situações em que somos obrigados a exibi-la. Felizmente não são as mais agradáveis. Claro que terás licença de porte de jeans ao fim de semana, mas a gravata é o ritual iniciático com que marcarás a entrada na idade adulta.
Pensarás agora em fazer carreira. E a carreira é uma coisa que se faz subindo. Alguns sobem por ser do partido; outros apesar de não o terem. Distingue-os o facto de os primeiros serem muito mais numerosos e de a sua ascensão ser substancialmente mais fácil. Poderás manter as tuas convicções, mas deverás optar por um prudente lusco-fusco: a afirmação da diferença exigirá que sejas profissionalmente muito melhor para que te tolerem. Mais vale não arriscares: entre a fidelidade e a competência, o poder que temos opta sempre pela primeira.
Deverás, portanto, ser cauteloso. Antigamente em cada organização havia um pide e toda a gente sabia quem era. Agora é tudo mais leve, mais solto, mais terra-a-terra: o tipo que nos trama sorri-os da secretária ao lado. Ou então foi a outra, aquela que, ainda na faculdade, passou, de repente, a cumprimentar só com um beijinho, como, de imediato, passaram a fazer a cabeleireira dela, a manicure dela e a costureira dela. De qualquer modo, a denuncia foi feita na reunião do partido e já ninguém vai preso por subversão. Apenas nos comunicam que não fomos promovidos ou que o nosso contrato não foi renovado. Por razões estritamente técnicas.
Entre um slogan e um argumento, escolherás o primeiro: a argumentação, como se sabe, é sinal da mais confrangedora tibieza. Se te couberem em sorte alguns subordinados, assumirás o protagonismo nos bons momentos e deixar-lhe-ás o ónus dos momentos maus. Os subordinados foram feitos exactamente para isso. E se, mesmo assim, te vires em dificuldades, escolherás alguns deles, elogiá-los-ás publicamente de modo excessivo e demiti-los-ás logo que possas. Se os teus erros exigirem a exposição pública de um culpado, que, pelo menos, não sejas tu. Terás, claro, que por de lado esse apego à solidariedade: vives sob um poder que tem o autoritarismo como gramática, o pragmatismo como prontuário, a hipocrisia como respiração.
Claro que a indignação nos prega partidas. Se um dia a náusea começar a estrebuchar, talvez seja prudente resistires. A coerência é um luxo que, muitas vezes, se paga caro. Umas boas férias ajudarão. Retemperado, poderás derramar sobre essa revolta a condescendência de um sorriso.
Mas, se mesmo assim, não te resignares à surdina do ressentimento, invocarás, como justificação, um excesso de juventude. Deverás ostentar nessa invocação o mais genuíno arrependimento. O poder adora arrependidos e concede-lhes sempre um perdão compadecido e o correspondente subsídio de instalação.
Mas se nada disto te bastar, se o cansaço te encalhar num monte de urtigas e a repulsa meter uma bala na câmara, talvez possas improvisar conselhos a um qualquer ex-aluno. Deverás destinar esta carta à mais secreta das tuas gavetas. Ou então resta-te assumir que és um caso perdido. Com a vertiginosa alegria de saberes que, apesar de tudo, a adolescência continua a cascatear-te baixinho por dentro.


Imagem: by me

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