Saiba-se: o texto
que se segue não é meu. A fotografia sim, o texto não.
Tem o título que
tem e foi escrito em 2012 por Juan José Millás. Publicado no jornal El País, em
Espanha.
Poderia ter sido
escrito e publicado hoje, por um qualquer conterrâneo e publicado num qualquer
jornal nacional.
Se os directores
dos nossos media tivessem a coragem de o publicar.
“O cano de uma
pistola pelo cu
Se percebemos bem -
e não é fácil, porque somos um bocado tontos -, a economia financeira é a
economia real do senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole
sobre a colónia, do capitalista manchesteriano sobre o trabalhador explorado. A
economia financeira é o inimigo da classe da economia real, com a qual brinca
como um porco ocidental com corpo de criança num bordel asiático.
Esse porco filho
da puta pode, por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se valorize ou
desvalorize dois anos antes de sequer ser semeada. Na verdade, pode comprar-te,
sem que tu saibas da operação, uma colheita inexistente e vendê-la a um
terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir, de
acordo com os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço
desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem que tu ganhes mais caso suba,
apesar de te deixar na merda se descer.
Se o preço baixar
demasiado, talvez não te compense semear, mas ficarás endividado sem ter o que
comer ou beber para o resto da tua vida e podes até ser preso ou condenado à forca
por isso, dependendo da região geográfica em que estejas - e não há nenhuma
segura. É disso que trata a economia financeira.
Para exemplificar,
estamos a falar da colheita de um indivíduo, mas o que o porco filho da puta
compra geralmente é um país inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os
cidadãos dentro, digamos que com gente real que se levanta realmente às seis da
manhã e se deita à meia-noite. Um país que, da perspetiva do terrorista
financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de
bonecos Playmobil andam de um lado para o outro como se movem os peões no Jogo
da Glória.
A primeira operação
do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista convencional: o
tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o caráter de pessoa, coisifica-a. Uma
vez convertida em coisa, pouco importa se tem filhos ou pais, se acordou com
febre, se está a divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma
competição. Nada disso conta para a economia financeira ou para o terrorista
económico que acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país - este, por acaso
-, e diz "compro" ou "vendo" com a impunidade com que se
joga Monopólio e se compra ou vende propriedades imobiliárias a fingir.
Quando o
terrorista financeiro compra ou vende, converte em irreal o trabalho genuíno
dos milhares ou milhões de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na
creche pública - onde estas ainda existem - os filhos, também eles produto de
consumo desse exército de cabrões protegidos pelos governos de meio mundo mas
sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União
Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser
desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões
de euros que estavam nos nossos cofres.
E não são
desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento
especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da
chamada zona euro.
Tu e eu, com a
nossa febre, os nossos filhos sem creche ou sem trabalho, o nosso pai doente e
sem ajudas, com os nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias
sentimentais, tu e eu já fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por
Merkel, já não temos as qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos
nossos semelhantes. Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de
idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível, como esse
pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na
nuca em nome de Deus ou da pátria.
A ti e a mim, estão
a pôr nos carris do comboio uma bomba diária chamada prémio de risco, por
exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia financeira. Avançamos com
ruturas diárias, massacres diários, e há autores materiais desses atentados e
responsáveis intelectuais dessas ações terroristas que passam impunes entre
outras razões porque os terroristas vão a eleições e até ganham, e porque há atrás
deles importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos especulativos
de que somos vítimas.
A economia
financeira, se começamos a perceber, significa que quem te comprou aquela
colheita inexistente era um cabrão com os documentos certos. Terias tu
liberdade para não vender? De forma alguma. Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou
ao vizinho deste. A atividade principal da economia financeira consiste em
alterar o preço das coisas, crime proibido quando acontece em pequena escala,
mas encorajado pelas autoridades quando os valores são tamanhos que transbordam
dos gráficos.
Aqui se modifica o
preço das nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o problema, ou
mais, enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E, por Deus, as
autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta que te vendeu,
recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto financeiro, ou seja,
um objeto irreal no qual tu investiste, na melhor das hipóteses, toda a poupança
real da tua vida. Vendeu fumaça, o grande porco, apoiado pelas leis do Estado
que são as leis da economia financeira, já que estão ao seu serviço.
Na economia real,
para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo
necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro, e embalar e
distribuir e faturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade imensa de tempo e de
energia para obter uns cêntimos que terás de dividir com o Estado, através dos
impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados porque a
economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco. A economia financeira
não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa também do
nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a
nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio,
passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do
sequestrado.
Há já quatro anos
que nos metem esse cano pelo rabo. E com a cumplicidade dos nossos.”
By me
Sem comentários:
Enviar um comentário