quinta-feira, 4 de junho de 2015

O sistema, o fabricante e o utilizador






É curioso como a tecnologia influi na cultura e nos hábitos daqueles que menos pensam no que fazem. E é triste que assim seja.



Tenho uma razoável aversão a fotografar na vertical.

Tenho dois motivos que justificam esta minha “dessimpatia”, a saber:

Por um lado uma questão cultural e profissional. Desde sempre nos habituamos a ver a imagem como horizontal. O cinema, a televisão, mesmo a manipulação das câmaras fotográficas, estão feitas para serem usadas e vistas na horizontal.

Não se prende isto apenas com as técnicas de captação e consumo de imagem mas também com a cultura em que nos inserimos. A escrita e a leitura fazem-se na horizontal. Vícios culturais, talvez.

Mas, e por outro lado, a nossa vivência faz-se na horizontal. Os nossos olhos estão ao lado um do outro e não acima um do outro. A nossa percepção visual está orientada para nos apercebermos do que nos cerca horizontalmente. Preocupamo-nos com predadores, lidamos com os nossos iguais, sempre na horizontalidade. Até mesmo o simples acto de caminhar nos leva a quase nada nos preocuparmos com o “em baixo”, a nada nos preocuparmos com o “em cima”, concentrando a nossa atenção com o “ao lado”. O “em baixo” será para sabermos de algum obstáculo, uma informação que obtemos e retemos, não nos preocupando mais com isso. O “em cima” será para sabermos se chove ou há pássaros, conhecimento que já sabemos antes de iniciarmos os trajecto. Mas olhamos e cuidamos do “ao lado”.

Sendo certo que a representação plástica é a materialização do olhar e do pensamento de quem grafa, o mais natural é fazermo-lo na horizontal.

As excepções, não havendo outro tipo de imposições, acontecem em três circunstâncias:

Por um lado o ser difícil colocar o assunto representado num formato horizontal. Árvores, figuras humanas, postes, edifícios… em querendo incluir tudo no rectângulo e com o maior tamanho possível, nestes casos a solução, não obrigatória, é a verticalidade.

Por outro, a subjectividade do representado e o peso que se quer que isso tenha em quem o vê. A verticalidade obriga-nos a fazer um varrimento de olhar “contra-natura”, colocando-nos enquanto espectadores num papel de subalternização ao representado. O céu está em cima, o inferno em baixo. Um retrato, fotografado ou pintado, está normalmente um pouco acima das nossas cabeças. O que nos leva, ao olharmo-lo, a sentirmo-nos “inferiores” ao retratado.

Neste campo, da subjectividade das posições relativas e do efeito que com isso se impõe no espectador, há uma entidade (ou várias) que têm sido especialistas em a usar: a igreja. Na arquitectura, na decoração dos templos, nos locais onde colocam as imagens (bi ou tri dimensionais), tudo conduz a uma subalternização dos fieis em relação aos deuses ou santos, sempre colocados no alto.

Por fim, existe uma outra condicionante à forma como a fotografia é exibida: a imprensa.

Em jornais ou livros, a gestão do espaço disponível é um equilíbrio entre as manchas de texto e as manchas de imagem. O livro ou o jornal, apesar de nos ser apresentado na vertical, é lido na horizontal quando aberto. E a gestão da importância e do co-relacionamento da imagem e do texto (ilustração ou legenda) definem, muitas vezes, se a imagem deverá ser vertical ou horizontal, por vezes para além do formato da imagem original.



Postas estas questões, e muito mais haveria para dizer sobre elas, regresso ao acto de fotografar. E ao facto de os dispositivos de produção de fotografia, vulgarmente conhecidos por câmara fotográfica, estarem concebidos para produzirem na horizontal. A verticalidade é uma opção que por vezes nem é ergonómica, obrigando a posições de mãos e braços menos confortáveis.

Acontece que tudo isto começa a pertencer ao passado.

Os sistemas de captação de imagem agora banalizados, os telemóveis e tablets, concebidos para serem usados em leitura e no acesso à net na vertical, são igualmente usados assim para fotografar. É raro ver alguém usar um destes aparelhos na horizontal ao fazer de uma fotografia.

Quem os usa não pensa na estética e nas diversas opções, não pensa na eficácia da comunicação, não pensa nas alternativas ao uso de um aparelho cujo formato se baseia, ainda, no velho e clássico auscultador telefónico e nas posições relativas do ouvido e boca, bem como na eventual ergonomia.

Usa o aparelho como vem de fábrica e consta dos manuais de instruções, limitando-se a copiar os gestos dos demais.



Lamento ver uma geração que se deixa subjugar humildemente pelas opções de fabricantes e não pelas suas próprias opções.

Quer seja vertical, quer seja horizontal, fotografem porque querem assim e não porque vos é imposto!



Por mim, continuarei a fotografar maioritariamente na horizontal.

Talvez porque sou agnóstico.

Talvez porque defendo acerrimamente a igualdade entre seres humanos.

E, juro, dá-me um gozo tremendo ser confrontado com um assunto vertical, imaginemos que uma árvore, e encontrar soluções para a representar num formato horizontal.





Nota: qualquer semelhança com Vilém Flusser não é mera coincidência

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