De minha casa para
o liceu onde estudei era bem uma hora de viagem. Não havia vias rápidas, nem
corredores do BUS e os próprios autocarros eram velhos. Aliás, tão velhos eram
que ainda circulavam os de dois pisos de porta atrás, porta esta que não fechava.
Era divertido para os que tentavam ir à borla, se o cobrador não aparecesse com
o seu terrífico alicate. E aparecia com frequência.
Às sete e pouco da
manhã o autocarro a que subia era sempre o mesmo, bem como os que comigo
aguardavam na paragem. Eu diria que, mais que ser sempre o mesmo no horário,
era efectivamente a mesma viatura.
Isto porque havia
no caminho uma pequena subida, com pouco mais de vinte metros, mas
particularmente íngreme. O suficiente para que aquele motor estafado e
carregado como ia, se queixasse e recusasse a subi-la.
E em o ouvindo a
protestar parado, todos nós, os habituais viajantes, já sabíamos o que fazer:
Saíamos todos, percorríamos aqueles vinte metros a pé, lado a lado com o velho
verdinho de dois pisos e, em terminando a subida, embarcávamos de novo.
Estivesse o sol já acima do horizonte ou fosse ainda noite fechada e a chover.
Interessante mesmo
de recordar é que, ao regressarmos ao interior, cada um ia ocupar exactamente o
mesmo lugar que tinha ocupado, fosse ele à janela ou na coxia, em baixo ou em
cima, ou, na pior das hipóteses, de pé. E eram só quatro que iriam de pé, que
havia lotação controlada.
Claro que os
protestos aconteciam, não fôramos nós portugueses, por vezes com alguma dose de
humor, outras nem tanto, fazendo a maioria cara de conformados, que outra
alternativa não tínhamos.
Isto hoje não
sucederia. Não há autocarros em tão mau estado, não há autocarros só com quatro
lugares de pé nem há autocarros de porta sempre aberta.
Mas também não há
o sentimento de respeito pelo próximo como então.
Seria, hoje, uma
correria para ver quem ficaria no lugar que mais lhe agradasse, com alguns
encontrões e discussões sobre a legitimidade de se estar sentado ou o fatalismo
de ficar de pé.
Nestes mais de quarenta
anos que nos separam do então vieram a democracia, a liberdade de expressão, os
autocarros com ar condicionado, escassos lugares sentados e vias reservadas aos
transportes públicos. Desapareceram a censura e a polícia política, as
paragens-zona e o alicate do cobrador.
Mas também
sobreveio uma sociedade competitiva, incentivada por governos, alimentada pelo
consumo e encorajada pelo pseudo desporto em que o que mais conta é a vitória e
não o participar. Em contrapartida, diluiu-se a capacidade de perdoar e a
solidariedade como atitude permanente na vida.
Para além das
memórias, tenho um alicate de cobrador para as reavivar. E tenho a prática do
quotidiano, que me mantém vivo e sem vergonha de olhar o espelho.
Nota fotográfica
adicional: Tenho para mim que o assunto mais difícil de fotografar é o ser
humano. Pela complexidade de registar o que está para além da superfície da
pele.
Mas logo a seguir
está a categoria de objectos como este: ferramentas e cutelaria. E jóias. O seu
exterior, polido e altamente reflector, mais do que nos mostrar aquilo de que é
feito, mostra-nos o que o circunda, em cor e luz.
O limite do
difícil serão espelhos: vá-se lá conseguir fotografar um sem que reflicta o que
lhe está em frente! Deixará de ser espelho.
Adicionalmente,
consiga-se lá fotografar um espelho garantindo a reprodução da geometria do seu
formato! Nestas circunstâncias, aquilo que veremos reflectido na sua superfície
será a própria câmara e fotógrafo. A menos que se recorra às já fora de moda
câmaras técnicas ou objectivas “shift” e à sua capacidade de deslocar e
descentrar a objectiva. Mas isso já são outros contos.
By me
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