Tinha previsto,
naquele dia, um passeio fotográfico a pé pela serra:
Começaria na
estrada Velha da Rainha, subindo até Monserrate, viraria a sul e continuando a
subir até aos Capuchos, descendo depois até à barragem do Rio da Mula, seguindo
depois pela estrada até à Lagoa Azul e acabando no Linhó, no final do dia.
Passeio longo,
como já não faço há muito.
Quase no início,
junto a um palácio na estrada, encontrei na berma um bilhete de identidade. De
um rapaz com 14 anos, se a memória me não falha.
Ali caído,
certamente seria levado pelo vento para o arvoredo, onde ficaria até o plástico
dar de si, ou seja, anos a fio. Recolhi-o com ideia de o entregar numa esquadra
de polícia. Certamente que eles saberiam fazê-lo chegar ao seu dono.
No final do dia, de
regresso e já no centro da vila, lá fui à esquadra.
Disse ao sentinela
ao que ia e ele fez-me entrar para falar com o graduado. Era uma graduada.
Pelo postigo,
descrevi o sucedido, com indicação do local e daquilo que queria que
acontecesse.
Olhou ela para
mim, olhou para o bilhete, de um lado e do outro, olhou de novo para mim e teve
uma saída brilhante:
“E onde está o
resto?”
Fiquei com cara de
parvo. É certo que não terei cara de muito inteligente, mas fiquei com cara de
parvo. Depois de inspirar umas duas ou três vezes, retorqui-lhe:
“Olhe: vamos fazer
de conta que nada disto aconteceu, que eu não ouvi o que me pareceu ouvir e
recuamos no tempo.
Boa tarde.
Encontrei esse bilhete de identidade na berma da estrada, junto a tal palacete,
e gostaria que o fizesse chegar às mãos do seu dono.
Fui claro na
descrição dos factos e do que aqui me trás, ou há que acrescentar algo mais?”
Não sei se foi do
meu tom suave mas incisivo, se do meu sorriso quase mavioso mas capaz de, a
qualquer momento, se transformar numa explosão de raiva que a derrubaria a ela,
ao postigo e ao demais mobiliário atrás dele.
Sei é que engoliu
em seco, tomou nota dos meus dados e me devolveu a saudação no final.
Fiz um sorriso
simpático ao sentinela, à saída.
Hoje foi bem o
oposto.
Eram quase onze e meia
da noite e estava perto da estação onde embarcaria para casa.
Na berma do
passeio uma carteira, pequena, de bolso, parecida com a minha.
Uma inspecção rápida
disse-me que continha um bilhete de transportes, um papel qualquer e dois cartões,
um de uma escola secundária, outro de uma biblioteca. De um rapaz.
Do outro lado do
largo, andando uns cinquenta metros numa rua que nele desemboca, há uma
esquadra de polícia. Era o local certo e faltava ainda um pedaço para o
comboio.
À porta, três polícias
fardados estavam na cavaqueira com uma senhora, que supus ser também agente.
Disse ao que ia e um deles fez-me entrar.
Tomou nota dos
meus dados, inspeccionou-se a carteira para verificar conteúdo e se teria
valores e disse-me que, por ser sexta à noite, só na segunda poderiam entrar em
contacto com a escola ou com a biblioteca para encontrarem o dono.
Despedimo-nos com
sorrisos e um obrigado recíproco.
Num quarto de
século coisas houve que mudaram para bem melhor. Esta foi uma delas.
By me
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