Não importa quem
escreveu. Ou talvez importe, que quem sabe fazer deve ser referido. Mas como
prefere a discrição, fica no anonimato.
Importa, sim, é
que o escreveu e bem. Aqui fica:
UM CONTO POR DIA
Sentada ao canto
da sala de espera, junto aos elevadores, aquela mulher olhava-nos nos olhos e
dizia-nos coisas que só quem sabia ouvir o olhar de alguém entendia.
Devia andar por
volta dos trinta anos de idade, mas parecia uma velhinha nas expressões do rosto
e no tremer do corpo.
Bebericava um café
que alguém lhe tinha dado e volta e meia levantava-se, aproximava-se de alguém
com passos vacilantes e pedia vinte cêntimos para um café.
Se recebia a
moeda, sorria. Se lhe era negado o pedido esboçava um esgar como resposta.
O corpo era
franzino, diria até que demasiado magra.
Vestia umas calças
de ganga cuja cor era indistinta, uma camisola que já conhecera melhores dias e
um casaco de cor bege que tanto podia ser de pele de ovelha como da pele dela
mesma porque quando se levantava e seguia nos seus passos vacilantes,
segurava-o pela banda com as mãos magras como quem se agarra a uma bóia de
salvação.
Era morena, rosto
escorrido, olhos castanhos profundos de uma dor infinita, lábios grossos e
escuros que ora sorriam ora choravam num esgar de dor e sofrida solidão.
Pendurada ao
pescoço, uma chave pendia de uma fita cor de laranja que volta e meia
verificava se ainda lá estava com as mãos finas, tremendo, tremendo como se
fizesse um frio de tremer a alma.
Sempre que passava
um médico ou enfermeiro levantava-se e ia pedir qualquer coisa.
Depois ficava
parada no corredor, parada como quem espera algo ou alguém, com os olhos fixos
no nada que era a sua vida.
Voltava à sala e
lá ia pedindo a este ou àquele uma moeda de vinte cêntimos para um café e
depois voltava a sentar-se no canto junto aos elevadores e ficava de olhar
perdido no vazio do que era a sua vida.
De vez em quando
chegava um auxiliar de enfermagem lá lhe trazia uma sanduíche e um chá ou café
que ela recebia com um sorriso.
Agradecia e de
seguida levantava-se e percorria a sala oferecendo a cada um o dom da partilha.
É servido?
Perguntava-nos.
As respostas eram
sempre negativas junto com os "muito obrigado" da boa educação de
alguns ou então o silêncio na resposta dos que não tendo educação nenhuma a
viam como alguém importuno, um ser a escorraçar por estar a mais.
Durante horas
observei-a, naquele cenário de drama humano.
Da orelha direita
escorrera-lhe sangue pelo rosto que entretanto já secara e nas roupas
andrajosas havia ainda vestígios de sangue misturado com lama e agonias várias.
Na troca de
olhares que fez comigo contou-me a sua pequena história.
Perdera tudo.
Primeiro perdera o
respeito da família e dos amigos, depois perdera o respeito por ela mesma e
finalmente perdera as ilusões de um dia voltar a ser gente e a ter uma vida
digna.
Não comia nada
havia dois dias e fora escorraçada do buraco que tinha sido a sua casa durante
algumas semanas.
As chaves eram da
porta de uma casa cuja morada já nem se lembrava mais e de onde tinha sido
despejada.
Já conhecera
vários buracos onde pernoitara e de onde era corrida ou pela polícia ou por
moradores vizinhos ou ainda por outros companheiros de infortúnio que nisto de
se viver na rua tem os seus quês e não há solidariedade que valha quando se
luta por um buraco e por um bocado de pão.
Aquele corte na
orelha era resultado das brigas pelos melhores buracos da cidade e ela já não
tinha muitas forças para continuar a lutar.
Quando andava,
vacilavam-lhe as pernas e tremia-lhe o corpo.
Quem olhava sem
ver, dizia que era droga.
Mas quem olhasse e
visse percebia que era fome.
Uma fome imensa
que já lhe roubara as forças e lhe tirara o brilho dos olhos e emaciava-lhe a
pele.
E voltava a pedir
a moeda de vinte cêntimos para o café a quem passava ou a algum doente.
Chegada a hora do
jantar, serviram sopa e sanduíches a quem esperava a sua vez nas urgências e
ela não se fez rogada.
Comeu de novo,
sentada no canto junto aos elevadores.
Comia como quem
comesse a sua última refeição na vida, saboreando cada migalha como se fosse um
repasto de ricos.
Tremiam-lhe as
mãos, o corpo franzino gemia em silêncio...
A fome não saciada
por uma simples refeição falava mais alto...
Apenas para quem
sabia ouvir aquela história.
Para os outros,
para quem não sabia ouvir, aquela mulher era uma chata de uma pedinte que ia
para ali importunar os doentes e os seus acompanhantes.
E nalgumas bocas
ouvi a frase "e assim se faz um ordenado ao fim do dia de
pedinchice".
A pobreza incomoda
muita gente porque lhes atira em pleno rosto a forma como se ganhou a riqueza
que se ostenta.
É fácil criticar o
mendigo quando se tem a mesa farta e uma casa onde morar.
Quando saí, já não
a vi pela sala nem pelos corredores, mas sei que hoje pelo fim do dia, é ali
que a podem encontrar.
Ou então estará
nalgum prédio vazio dos muitos que existem a cair aos pedaços pela cidade.
Se for nalgum
desses buracos, ela vai ter de lutar, se tiver forças, para poder dormir se
conseguir resistir ao frio de mais um dia de uma vida com muitas histórias para
contar a quem souber ouvir.
Imagem: by me