Creio
já ter contado a estória, mas aqui fica de novo.
Teria
eu onze anos, se as referências espaciais me não atraiçoam. Viajava no segundo
piso de um autocarro a caminho da escola, como fazia todos os dias.
Quando
subi a bordo já o pequeno drama estava a decorrer: o cobrador a exigir o
pagamento do bilhete a uma senhora e esta a dizer que tinha deixado o
porta-moedas em casa. A coisa já estava feia e acentuava-se: ele, com a mala de
cabedal dos trocos pendurada no ombro e o alicate e os caderninhos de bilhetes
na mão, a insistir e a ameaçar com a polícia e a ida à esquadra, ela já chorosa
e a revirar a sua bolsa, pedindo por tudo que não, que se tratava de um
esquecimento.
Suponho
que me tenha sentido incomodado com a insistência feroz do cobrador e com a
infelicidade da senhora. A ameaça de polícia e esquadra era coisa grave, na
altura. E esquecer o porta-moedas pareceu-me (e parece-me) coisa possível e
acidental.
Enchendo-me
de uma coragem que me não conhecia, ofereci-me para pagar o bilhete. O que foi aceite,
com agrado, pelas partes. Ele, que só queria o dinheiro do bilhete, não
importando quem pagava; ela que evitava problemas de maior.
Depois
da transacção teremos ficado um pouco à conversa, a senhora e eu. Não me lembro
disso. Acredito que tivesse ficado eu tão envergonhado com a minha própria
ousadia que a minha memória tenha apagado os minutos seguintes. E a senhora
saiu, recordo-me onde, e saí eu, três paragens depois, de caminho para a
escola. A minha vergonha foi tal que a ninguém contei o episódio, nem na escola
nem em casa.
Passados
dias, talvez uma semana talvez mais, pergunta-me minha mãe entrando em casa com
cara de circunstância e exibindo uma carta: “O que é isto?”
O
que tinha na mão era um sobrescrito, de dimensões ao tamanho de um cartão de
visita, endereçado a mim e vindo pelo correio. Atrás, o remetente era
desconhecido e com um nome feminino, completamente ignorado.
Fiquei
à-toa, que nem eu mesmo sabia o que era. Aliás, as únicas cartas que havia
recebido na vida eram as que a família me mandava, quando ía nas férias grandes
passar uma temporada a casa de meus avós. Aquela era uma estreia absoluta.
No
interior do envelope, um cartão de visita. No seu reverso, uma pequena nota de
agradecimento repenicado por ter eu pago o tal bilhete de autocarro. E, soltos
junto com o cartão, selos de correio perfazendo a quantia do bilhete.
Não
sei como a senhora terá sabido o meu nome e morada. Acredito que tenha sido na
pequeníssima conversa que tivemos, entre o pagar eu o bilhete e o sair ela do
autocarro. Não me recordo disso, nem do seu nome ou feições. Para mim, na
altura, era uma senhora, adulta, apenas.
E
não creio que a estória tivesse ficado na minha memória se ela me não tivesse
escrito a fazer o pagamento. Ainda que ousado, devo ter entendido o que fiz
como natural e necessário. Um daqueles gestos que fazemos sem pensar em
retorno.
De
então para cá tenho-me repetido nem sei já quantas vezes. Não necessariamente
com um bilhete, não necessariamente recebendo uma carta. Mas forçosamente com a
certeza que, tal como a Terra gira sobre si mesma, também a vida funciona em
círculo e que tudo o que fazemos, cedo ou tarde regressa de algum modo.
Mesmo
que com um façanhudo cobrador de autocarro, exibindo um terrífico e tirano
alicate obliterador.
A
essa senhora, que me levará umas dezenas de anos de avanço, e onde quer que
esteja, o meu obrigado pela lição.
By me
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