sábado, 24 de agosto de 2013

"Pagamentos"



As fotografias que fiz no âmbito do meu projecto “Old Fashion” eram de borla. Gratuitas. Custo zero.
Eram elas feitas com o que aqui se vê, mais aquilo que aqui se não vê e que estava lá dentro bem no segredo dos deuses, e entregues a troco de coisa alguma.
Alguns desconfiavam seriamente da coisa e não queriam ser fotografados. Outros, sabendo-o grátis, queriam fazer várias. Outros ainda não entendiam que as coisas boas da vida são de borla, como o ouvir os pássaros ou o estar ao sol. Um houve que me perguntou se eu tinha licença para tal negócio. E houve ainda quem não aceitasse as condições propostas e fizesse questão de pagar. Deste último grupo tive as surpresas mais díspares: cafés, garrafas de água, gelados, bolos, jornais…
Recordo uma senhora, de muito poucas posses, que me ofereceu um pequenino tripé fotográfico já antigo, recolhido nem sei onde, “como paga de a ter fotografado no dia da Mulher”, disse-me ela. Tenho-o aqui, à vista e em evidência, em casa.
Recordo ainda uma outra senhora, esta com posses, que vinha com duas crianças, que contornou o negócio à minha revelia: passou p’lo quiosque onde sabia que eu ia tomar café, e lá deixou dinheiro para eles. Só o soube no final do dia, já com tudo desmontado, antes de abandonar o Jardim, quando lá me disseram que tinha ali crédito aberto.
Ou um outro, que nas suas palavras tinha de ofício o “carregar a merda dos outros” e que, traduzido em português corrente, corresponde a recolher de noite o lixo dos contentores, me prometeu deixar um copo de vinho pago e à minha espera, no tasco ali próximo e mesmo por baixo da casa onde vivia.
Ou ainda aqueles imigrantes de leste, sem ofício nem rendimentos, que me entregaram as pouquíssimas moedas que sobraram depois de passarem p’lo supermercado. Todas moedas de um, dois e cinco cêntimos.
A esmagadora maioria dos que fizeram questão de pagar aquilo que sabiam ser de borla foi gente para quem o dinheiro é difícil e preocupação constante. Todos eles foram sentidos e feitos, nunca como pagamento mas antes como retribuição. Coisas já raras de ver, nos tempos que correm.
E todos eles me tocaram fundo, p’la sinceridade dos gestos e p’la relatividade do seu valor monetário em função das posses de quem o fazia.
Mas o mais puro deles é o que aqui se vê: estas flozinhas, apanhadas naquele mesmo jardim, e que me foram entregues p’la petiza que se fez fotografar com os irmãos e os pais. Não foi um pagamento: foi uma dádiva. Uma coisa bonita por uma coisa bonita, uma oferta por uma oferta, uma troca em que o que contou, de parte a parte, foi o sentimento com que foi feito.
Fui principescamente pago, naquela manhã de domingo.


A técnica, a estética, a ética, a semiótica, tudo isso é importante em tudo o que envolve a fotografia. Mas se não houver sentimento, caramba!, para que serve?

By me 

Sem comentários: