O caso tem,
possivelmente, vinte e cinco anos, não garanto.
O que garanto,
isso sim, é que se trata de uma daquelas histórias que vivi e em que o que fiz,
levado por sentimentos instintivos, ainda hoje me pesa na consciência.
Não sei se
tornarei a viver algo de semelhante e, se o viver, se actuarei diferentemente.
Espero bem que sim!
A linha de Sintra,
aquela suburbana que uso diariamente, ainda não estava modernizada. E a estação
de Benfica, que usava à chegada da grande cidade, ainda era de cais baixinho,
edifício quase centenário e o acesso directo à linha era o habitual, já que a
sua travessia se fazia por sobre um passadiço de madeira por entre os
dormentes.
Na pressa matinal,
a caminho do autocarro, estava junto da janela do maquinista da composição
quando este apitou, sinal de que iria fechar as portas e iniciar a marcha. O
que me fez dar um salto e olhar para quem apitava foi o prolongado da buzina,
bem maior que o toque curto do costume.
Olhei-o e tinha os
olhos muito abertos e fixos na linha à sua frente. O meu olhar seguiu o dele e,
a uns cinquenta metros, entre os carris, estava um corpo deitado. Como não
deveria estar e onde não deveria estar.
Corri! Não que
seja médico ou técnico de saúde, mas não estando por lá ninguém, alguma coisa
poderia fazer. E fiz!
Tratava-se de uma
senhora de idade, talvez uns sessenta, talvez uns setenta anos. Com roupas
modestas, limpas mas muito modestas, não aparentando qualquer mal visível que
aquilo justificasse. Ou talvez aparentasse, já que era uma decisão e não um
acidente: esperava que o comboio lhe passasse por cima.
Claro que a
senhora, no seu desespero, calculou mal a coisa e ficou na linha depois da
paragem e não antes. E jamais um maquinista a apanharia nestas circunstâncias.
Abeirei-me dela e
tentei pela conversa demovê-la dos seus intentos. Inútil! Não se movia e, de
olhos esbugalhados, fitava a composição imóvel que não a atropelaria.
Entretanto chegaram funcionários ferroviários, vindos da estação, e juntos
levantámos e levámos a senhora para o interior do edifício. Deixei-a aí aos
cuidados de quem lá estava e de uma ambulância que estaria por pouco porque
chamada para tal.
Ao afastar-me,
porque nada mais ali poderia fazer, duas coisas me ficaram gravadas
indelevelmente. Não a posição dela sobre a brita e chulipas. Não as palavras
que pronunciou, poucas e ininteligíveis. Não as cores das roupas (recordo ser
Inverno e que não tinha meias calçadas).
Recordo, antes
sim, o cheiro! Para além do da urina, que se havia descontrolado, havia um
outro que nunca senti antes ou depois. Animal, acri-doce, ténue mas presente.
Acredito que tenha sentido o mesmo que os animais sentem em outros quando estes
estão com medo ou em vias de atacar: adrenalina. O que não será de estranhar,
dadas as circunstâncias. E com a proximidade da minha cara com o seu corpo
quando a transportámos, não o poderia deixar de sentir!
E recordo a sua
mão direita, fechada em punho e com uma força não esperada nesta situação, que
se cerrava em torno de uma nota de cinquenta escudos. Seria, talvez, o que lhe
sobrava e que a levaria aquele gesto de desespero. Ou, quem sabe, o que ainda
tinha e que poderia servir para um funeral. Nunca o soube ao certo e qualquer
outra opinião é tão válida quantos estas. Mas havia uma força férrea que não a
deixava perder aquela nota!
O eu ter tirado
aquela senhora daquela situação nada teve de especial. Qualquer outro, ali e
então, teria feito o mesmo. E se não fosse por ela mesmo, seria, como ouvi
ainda alguns comentários ao afastar-me, para não atrapalhar a vida dos que, no
comboio, queiram ir trabalhar.
Mas estou
arrependido de o ter feito! O suicídio é o último gesto de liberdade do ser
vivo, um último protesto contra o que quer que seja, a última solução para se
aliviar de um qualquer jugo ou sofrimento que atormente.
Posso eu prender
alguém? Posso eu censurar um protesto, o derradeiro? Posso eu obrigar alguém a
viver em sofrimento ou opressão?
Não posso! Em
consciência não posso! O impedir um suicido é isso mesmo e não posso, ou não
devo, fazê-lo. Sob pena, entre outras questões morais, de entrar em contradição
com o que entendo ser a liberdade do individuo.
Claro que a
maioria das sociedades condenam o acto suicida! Por questões de organização,
por questões de poder, por questões religiosas, por questões materiais. Que o
suicídio é, também, uma forma de fugir ao controlo da sociedade e o cidadão
comum, tal como a estrutura da autoridade, não podem consentir tal afronta. E,
nada podendo fazer para corrigir um acto consumado, fica sempre a ameaça do
manto de vergonha lançado sobre o próprio e a sua família.
Mas se não posso
obrigar ninguém a morrer, quer seja por crime dito comum, quer seja por actos
bélicos, quer seja por crime dito acto de justiça, então também não devo
impedir ninguém de morrer, se essa for a sua vontade!
Impedi ou
colaborei no impedimento de um suicídio. O meu gesto não foi determinante mas
foi cúmplice. De tal me penitencio e tenho penitenciado, sempre com a esperança
de, numa outra situação semelhante, não repetir o gesto!
By me
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