Sem
que verdadeiramente o tivesses notado, entre a boémia e as lutas estudantis,
voaram os cinco anos que te separavam do primeiro emprego. Prolongaste
habilmente a adolescência até onde te foi possível. Até hoje. Subitamente
descobres que se tornou inconveniente o protesto, arriscada a crítica,
imperdoável a irreverência. Há quem ache que crescer é isso.
Fica
desde já decretado que usarás gravata. É natural: são cada vez mais as
situações em que somos obrigados a exibi-la. Felizmente não são as mais
agradáveis. Claro que terás licença de porte de jeans ao fim de semana, mas a
gravata é o ritual iniciático com que marcarás a entrada na idade adulta.
Pensarás
agora em fazer carreira. E a carreira é uma coisa que se faz subindo. Alguns
sobem por ser do partido; outros apesar de não o terem. Distingue-os o facto de
os primeiros serem muito mais numerosos e de a sua ascensão ser
substancialmente mais fácil. Poderás manter as tuas convicções, mas deverás
optar por um prudente lusco-fusco: a afirmação da diferença exigirá que sejas
profissionalmente muito melhor para que te tolerem. Mais vale não arriscares:
entre a fidelidade e a competência, o poder que temos opta sempre pela
primeira.
Deverás,
portanto, ser cauteloso. Antigamente em cada organização havia um pide e toda a
gente sabia quem era. Agora é tudo mais leve, mais solto, mais terra-a-terra: o
tipo que nos trama sorri-os da secretária ao lado. Ou então foi a outra, aquela
que, ainda na faculdade, passou, de repente, a cumprimentar só com um beijinho,
como, de imediato, passaram a fazer a cabeleireira dela, a manicure dela e a
costureira dela. De qualquer modo, a denuncia foi feita na reunião do partido e
já ninguém vai preso por subversão. Apenas nos comunicam que não fomos
promovidos ou que o nosso contrato não foi renovado. Por razões estritamente
técnicas.
Entre
um slogan e um argumento, escolherás o primeiro: a argumentação, como se sabe,
é sinal da mais confrangedora tibieza. Se te couberem em sorte alguns
subordinados, assumirás o protagonismo nos bons momentos e deixar-lhe-ás o ónus
dos momentos maus. Os subordinados foram feitos exactamente para isso. E se,
mesmo assim, te vires em dificuldades, escolherás alguns deles, elogiá-los-ás
publicamente de modo excessivo e demiti-los-ás logo que possas. Se os teus
erros exigirem a exposição pública de um culpado, que, pelo menos, não sejas
tu. Terás, claro, que por de lado esse apego à solidariedade: vives sob um
poder que tem o autoritarismo como gramática, o pragmatismo como prontuário, a
hipocrisia como respiração.
Claro
que a indignação nos prega partidas. Se um dia a náusea começar a estrebuchar,
talvez seja prudente resistires. A coerência é um luxo que, muitas vezes, se
paga caro. Umas boas férias ajudarão. Retemperado, poderás derramar sobre essa
revolta a condescendência de um sorriso.
Mas,
se mesmo assim, não te resignares à surdina do ressentimento, invocarás, como
justificação, um excesso de juventude. Deverás ostentar nessa invocação o mais
genuíno arrependimento. O poder adora arrependidos e concede-lhes sempre um
perdão compadecido e o correspondente subsídio de instalação.
Mas
se nada disto te bastar, se o cansaço te encalhar num monte de urtigas e a
repulsa meter uma bala na câmara, talvez possas improvisar conselhos a um
qualquer ex-aluno. Deverás destinar esta carta à mais secreta das tuas gavetas.
Ou então resta-te assumir que és um caso perdido. Com a vertiginosa alegria de
saberes que, apesar de tudo, a adolescência continua a cascatear-te baixinho
por dentro.
José
Valente
In
“Público” 1994
Imagem: by me
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