quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Trilhos e cumplicidades



Começou nestas coisas aos 14 anos. Saía da escola e ia directamente para o laboratório, onde a sua função era tomar conta do tambor de secagem.
Só algum tempo depois foi autorizado a revelar as películas: 135, que abria com um tira caricas, 120, que havia que separar o papel da película, 110 e 126, que havia que partir a cassete de plástico.
De tudo ali se revelava e sempre sem tanque. O filme era seguro com as mãos e feito entrar e sair das tinas com os químicos. Um pouco primário, dirão alguns, mas era o possível para tantos formatos trazidos pelos militares daquele e de outros aquartelamentos que ali os levavam para que o furriel fotógrafo deles se encarregasse. Por vezes dezenas de rolos no mesmo dia.
Os tempos passaram e os portugueses saíram da Guiné. Mas o gosto pela fotografia ficou-lhe. Quando pôde iniciou o negócio, fazendo reportagens, fotografias de passe e o mais que lhe pedissem. Chegou mesmo a ter loja e um mini-lab.
Que agora está parado. Abandonado. Talvez já inútil, que há anos que não trabalha.
O seu dono, confrontado com os níveis de vida que lá se faziam e fazem sentir, acabou por vir para Portugal, onde trabalha nas obras.
Nos tempos livres vai fazendo alguns trabalhos de fotografia e vídeo entre a comunidade guiniense.
Conheci-o quando lhe dei uma boleia taxi, do meu bairro para Lisboa, num dia de greve dos comboios. Falámos de fotografia, de greves e da vontade dele em adquirir melhor equipamento e incrementar o que vai fazendo.
Da segunda vez que nos vimos, foi ele que veio meter conversa. Mostrou-me algumas fotografias de crianças e idosos conterrâneos que tinha impresso para fazer a capa de um DVD. E trocámos opiniões de como expor correctamente para peles negras, considerando que as câmaras estão preparadas para peles brancas.
Bem como mais um ou dois truques do ofício, de parte a parte.
À conversa juntou-se-nos um seu patrício. Suponho que vindo recentemente do seu país, que o seu português era bem deficiente. Mas deu para nos entendermos.
A ponto de me perguntar se também era fotógrafo. E se tinha estado na Guiné. Esta outra formulada meio a medo.
Quando lhe respondi que não, que apesar da alvura das barbas e cabelo, não tinha idade para lá ter estado, o seu sorriso abriu-se par em par e a conversa seguiu, bonita e cúmplice.
Separámo-nos à saída da estação: eles para o seu destino, cá no bairro, eu para o meu autocarro, também local.

E não adianta virem-me com tretas sobre a necessidade imperiosa dos automóveis. Nunca teria tido esta cumplicidade com estes confrades se usasse um sobretudo de lata, no lugar de deixar que as agulhas da vida me façam cruzar com tanta e tão boa gente!

By me

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