Só
a via quando as portas se abriam. Ou, se espreitasse um pouquinho sobre a
esquerda, através dos vidros das duas portas. Era só uma nesga e teria o
comboio estar numa recta. Nas curvas deixava de a poder ver.
Nada
demais, esta situação. Ainda que não seja este um dos meus bancos preferidos, já
estou habituado a isto. E até pode ser interessante, se no banco onde ela
estava sentada, estiver uma carinha laroca que dê gosto observar. Não era o
caso: teria uns sessenta e muitos, quando não mais.
O
que me prendeu a tentação foi o insólito da sua actividade na hora em que
acontecia. Era o fim de uma tarde de um domingo, com a luz solar já fugidia. E
ela vinha a tratar da sua maquiagem.
Não
é incomum ver essa actividade numa carruagem. Mas, geralmente, acontece de manhã,
dando a entender o ter havido pouco tempo entre o sair da cama e o sair de
casa. E, também geralmente, este pintar de cara faz-se na estação. Sentadas nos
bancos, enquanto esperam pelo comboio.
Agora
a bordo, em trânsito, ao fim da tarde e com os solavancos… pouco normal.
Mas
raro, raro mesmo, era a forma como estava a ser feito.
Com
um pincelinho, ia retirando a tinta do frasquinho preto para bem ruborizar os lábios.
Mas, talvez que da idade, talvez que com a trepidação, o certo é que estava a
ser difícil de acertar nos lábios, pintalgando em direcção ao nariz e ao
queixo. Os lados também não eram poupados.
Confesso
que não sei se eu mesmo conseguiria melhor resultado: a composição, não sendo
velha, já não é nova e trepida o suficiente para não ser fácil. Mesmo o
escrever, com a mão apoiada, não resulta em letra bonita, quanto mais sem apoio
para braços ou mãos e acertar em coisas pequenas com um pincel com um quatro ou
cinco centímetros de comprido.
Mas
o trágico, que alguns entenderão como cómico, é que quando terminou e guardou
os pertences, o seu espelho mostrava-lhe certamente a falta de firmeza. Tal
como eu a via por entre os vidros ou quando alguém passava e abria as portas. E
deu-se ela por satisfeita com o vermelho muito para além dos lábios. Muito para
além. O seu sorriso ao espelho dizia-o bem.
Não
sei para onde foi. Quando desci na minha estação, ainda lá estava, sorrindo
como se tudo estivesse bem. Suponho que, para ela, estivesse tudo bem.
Divertido
foi o fazer da fotografia. Não me passaria pela cabeça o mostrar quem assim se
pintou. Nunca. Por isso, deu-me algum trabalho conseguir o ponto de vista certo
para o fazer: esperar que ninguém passasse, chegar-me um nico para o lado… mas
lá o consegui.
A
acompanhar as minhas manobras, um jovem, com um saco desportivo e a ouvir música,
sentado num banco entre mim e a porta. Olhava para mim de soslaio e franzindo o
sobrolho. Quando me dei por satisfeito e guardei a câmara no bolso, foi a sua
vez de espreitar para onde tinha apontado eu. E deve ter visto a senhora. Mas não
se apercebeu que a perspectiva não era exactamente a mesma e que o que ele via
não correspondia com rigor ao que eu tinha registado. Que abanou a cabeça, em
notória desaprovação. E, quando saiu e já no cais, abanava a cabeça olhando
para mim.
Não
tive oportunidade de lhe mostrar a imagem ou explicar a minha atitude. Nem sei
se adiantaria.
By me
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