segunda-feira, 30 de setembro de 2013

P'la porta



Só a via quando as portas se abriam. Ou, se espreitasse um pouquinho sobre a esquerda, através dos vidros das duas portas. Era só uma nesga e teria o comboio estar numa recta. Nas curvas deixava de a poder ver.
Nada demais, esta situação. Ainda que não seja este um dos meus bancos preferidos, já estou habituado a isto. E até pode ser interessante, se no banco onde ela estava sentada, estiver uma carinha laroca que dê gosto observar. Não era o caso: teria uns sessenta e muitos, quando não mais.
O que me prendeu a tentação foi o insólito da sua actividade na hora em que acontecia. Era o fim de uma tarde de um domingo, com a luz solar já fugidia. E ela vinha a tratar da sua maquiagem.
Não é incomum ver essa actividade numa carruagem. Mas, geralmente, acontece de manhã, dando a entender o ter havido pouco tempo entre o sair da cama e o sair de casa. E, também geralmente, este pintar de cara faz-se na estação. Sentadas nos bancos, enquanto esperam pelo comboio.
Agora a bordo, em trânsito, ao fim da tarde e com os solavancos… pouco normal.
Mas raro, raro mesmo, era a forma como estava a ser feito.
Com um pincelinho, ia retirando a tinta do frasquinho preto para bem ruborizar os lábios. Mas, talvez que da idade, talvez que com a trepidação, o certo é que estava a ser difícil de acertar nos lábios, pintalgando em direcção ao nariz e ao queixo. Os lados também não eram poupados.
Confesso que não sei se eu mesmo conseguiria melhor resultado: a composição, não sendo velha, já não é nova e trepida o suficiente para não ser fácil. Mesmo o escrever, com a mão apoiada, não resulta em letra bonita, quanto mais sem apoio para braços ou mãos e acertar em coisas pequenas com um pincel com um quatro ou cinco centímetros de comprido.
Mas o trágico, que alguns entenderão como cómico, é que quando terminou e guardou os pertences, o seu espelho mostrava-lhe certamente a falta de firmeza. Tal como eu a via por entre os vidros ou quando alguém passava e abria as portas. E deu-se ela por satisfeita com o vermelho muito para além dos lábios. Muito para além. O seu sorriso ao espelho dizia-o bem.
Não sei para onde foi. Quando desci na minha estação, ainda lá estava, sorrindo como se tudo estivesse bem. Suponho que, para ela, estivesse tudo bem.

Divertido foi o fazer da fotografia. Não me passaria pela cabeça o mostrar quem assim se pintou. Nunca. Por isso, deu-me algum trabalho conseguir o ponto de vista certo para o fazer: esperar que ninguém passasse, chegar-me um nico para o lado… mas lá o consegui.
A acompanhar as minhas manobras, um jovem, com um saco desportivo e a ouvir música, sentado num banco entre mim e a porta. Olhava para mim de soslaio e franzindo o sobrolho. Quando me dei por satisfeito e guardei a câmara no bolso, foi a sua vez de espreitar para onde tinha apontado eu. E deve ter visto a senhora. Mas não se apercebeu que a perspectiva não era exactamente a mesma e que o que ele via não correspondia com rigor ao que eu tinha registado. Que abanou a cabeça, em notória desaprovação. E, quando saiu e já no cais, abanava a cabeça olhando para mim.

Não tive oportunidade de lhe mostrar a imagem ou explicar a minha atitude. Nem sei se adiantaria.

By me 

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