segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O povo é sereno



“O povo é sereno! É só fumaça! O povo é sereno!”
Foram estas palavras que foram ditas de uma varanda do Terreiro do Paço, em 1975, frente a uma manifestação, quando rebentaram umas granadas de gás. E a expressão ficou: “o povo é sereno”!
Sabem-no os políticos, sabem-nos os governantes, sabem-no as autoridades policiais. O povo é sereno!
E o povo é sereno porque funciona qual rebanho, “levado, levado sim, pela voz do som tremendo” das promessas.
O Povo, essa entidade sem nome nem cara, preocupa-se muito naturalmente com a sobrevivência do quotidiano, com o garantir a saúde, a comida e o abrigo de cada dia (o pão nosso de cada dia), deixando para quem pode o tomar de decisões, o agir, o fazer algo que não seja o de cada dia.
Passou ontem um ano sobre a maior manifestação em Portugal desde o “primeiro primeiro de Maio”.
Surgiu ela das novas tecnologias e da saturação de nuvens negras no futuro. E foi belo, aquele juntar de gente. E foi assustador a velocidade com que se marchou até ao encontro final. Nunca tinha visto tanta gente a desfilar tão depressa, como se a vontade de fazer alguma coisa fosse premente. Era!
Mas esgotou-se aí essa vontade!
O Povo, esse anónimo que vai às manifestações com uma bandeira numa mão e uma sandocha no saco, cansou-se de dizer em voz alta o que lhe vai na alma. Prefere fazê-lo na tranquilidade do circulo de conhecidos – trabalho, família, cafés, internetes – deixando para aqueles que têm ideias o fazer do barulho e propor algo.

Vivemos em circuito fechado!
Dependemos das leis, que são feitas por partidos (entidades privadas) com assento parlamentar e que têm a exclusividade de o fazer.
O alterar do sistema vigente, quer seja das leis em vigor quer seja do pô-las em prática, é impossível sem passar por eles, os partidos políticos.
Ao comum do cidadão, o tal que pertence ao Povo, é vedada a participação nas decisões, excepto a intervalos regulares, com o acto eleitoral.
E o Povo, sabendo disso, deixa-se levar, mesmo que isso signifique dividir por mais um a sardinha na mesa, ou esperar mais umas semanas por um exame de saúde, ou o amontoar de crianças nas salas de aula, ou o recusar aos mais velhos um fim de vida condigno.
Vamo-nos ajeitando, ao sabor das leis que não decidimos, numa vida que não queremos e com um futuro que não entrevemos.
Que “O povo é sereno!”
E os que tomam decisões, e deixam comida no prato e, sorrindo, vão dando gorgetas a quem recolhe a comida desperdiçada, sabem bem que o povo é sereno.
Tal como têm o cuidado de nunca apertar a tarraxa em demasia, mantendo sempre a folga suficiente para que, nos actos eleitorais, haja um simulacro de legitimidade e que continuem por lá, prometendo o que sabem não ir cumprir, sorrindo publicitariamente ao tal povo sereno.

Vejo apenas duas formas de acabar com a tarraxa e com as decisões tomadas em nome do povo mas que não o beneficia:
Abrir o parlamento aos cidadãos, para que as leis e o seu colocar em prática sejam, de facto, a expressão da vontade do povo. Terminar com o monopólio legislativo de entidades privadas e deixar que seja o povo a decidir e executar.
Impossível, esta opção! Que implicaria que as leis fossem alteradas. E quem faz as leis, agora, são os que detêm o monopólio.
Claro que poderia ser posta em prática quebrando e infringindo as leis vigentes para serem refeitas por e em prol do povo. Mas quem detém o poder conta com esta alternativa e mantém sob controlo o que o mantém no poder: justiça, polícias e militares. A força! Os que possuem o poder físico e legal para manter o sistema controlado.
E, para quem acha que isto é falso, veja-se com a tarraxa tem sido apertada diferentemente para o tal “povo” e para as tais instituições que asseguram a manutenção do poder.
A tomada do poder pelo tal “povo sereno” implicaria que deixasse de ser sereno e que aceitasse correr o risco de confrontos físicos com o poder vigente e a forma de o executar.
A história bem recente de outros povos tem-nos mostrado onde tal acção pode levar. Pode ser uma solução, mas com custos, a muito curto prazo, muito elevados.
Outra opção passa por não reconhecer ao poder o poder que tem. Não aceitar que o exerça, mesmo que se mantenha por lá. Ignorar as suas decisões e leis, fazendo o tal povo sereno a sua própria vida como se ele lá não estivesse.
Dá-se o nome a isto de “desobediência civil” e o poder não gosta dela. Que obriga a usar os braços da lei sobre quem não cumpre. Sobre muitos que não a cumprem. E usar da força sobre quem a não pratica. Sobre quem é “apenas” sereno.
É uma opção que nada tem de original e com custos pesados, que o poder não cede de bom grado.
Mas “O Povo é sereno”!
E enquanto o vai sendo, as elites dirigentes e as que aspiram a o ser vão planeando o seu próprio futuro alicerçado na serenidade do povo.

Ontem comemorou-se o primeiro aniversário de uma hipotética quebra de serenidade.
Alguns, poucos, compareceram para o celebrar e tentar acabar com o apodo criado por Pinheiro de Azevedo. Com ideias e projectos.
Mas, enquanto mais não for que uma efeméride, com ou sem fumaça, e houver uma côdea de pão, mesmo que rijo, o Povo vai continuar a ser sereno e, serenamente, a deixar-se levar por interesses que não são os seus.


By me

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