“O
povo é sereno! É só fumaça! O povo é sereno!”
Foram
estas palavras que foram ditas de uma varanda do Terreiro do Paço, em 1975,
frente a uma manifestação, quando rebentaram umas granadas de gás. E a expressão
ficou: “o povo é sereno”!
Sabem-no
os políticos, sabem-nos os governantes, sabem-no as autoridades policiais. O
povo é sereno!
E
o povo é sereno porque funciona qual rebanho, “levado, levado sim, pela voz do
som tremendo” das promessas.
O
Povo, essa entidade sem nome nem cara, preocupa-se muito naturalmente com a
sobrevivência do quotidiano, com o garantir a saúde, a comida e o abrigo de
cada dia (o pão nosso de cada dia), deixando para quem pode o tomar de decisões,
o agir, o fazer algo que não seja o de cada dia.
Passou
ontem um ano sobre a maior manifestação em Portugal desde o “primeiro primeiro
de Maio”.
Surgiu
ela das novas tecnologias e da saturação de nuvens negras no futuro. E foi belo,
aquele juntar de gente. E foi assustador a velocidade com que se marchou até ao
encontro final. Nunca tinha visto tanta gente a desfilar tão depressa, como se
a vontade de fazer alguma coisa fosse premente. Era!
Mas
esgotou-se aí essa vontade!
O
Povo, esse anónimo que vai às manifestações com uma bandeira numa mão e uma
sandocha no saco, cansou-se de dizer em voz alta o que lhe vai na alma. Prefere
fazê-lo na tranquilidade do circulo de conhecidos – trabalho, família, cafés,
internetes – deixando para aqueles que têm ideias o fazer do barulho e propor
algo.
Vivemos
em circuito fechado!
Dependemos
das leis, que são feitas por partidos (entidades privadas) com assento
parlamentar e que têm a exclusividade de o fazer.
O
alterar do sistema vigente, quer seja das leis em vigor quer seja do pô-las em
prática, é impossível sem passar por eles, os partidos políticos.
Ao
comum do cidadão, o tal que pertence ao Povo, é vedada a participação nas decisões,
excepto a intervalos regulares, com o acto eleitoral.
E
o Povo, sabendo disso, deixa-se levar, mesmo que isso signifique dividir por
mais um a sardinha na mesa, ou esperar mais umas semanas por um exame de saúde,
ou o amontoar de crianças nas salas de aula, ou o recusar aos mais velhos um
fim de vida condigno.
Vamo-nos
ajeitando, ao sabor das leis que não decidimos, numa vida que não queremos e
com um futuro que não entrevemos.
Que
“O povo é sereno!”
E
os que tomam decisões, e deixam comida no prato e, sorrindo, vão dando gorgetas
a quem recolhe a comida desperdiçada, sabem bem que o povo é sereno.
Tal
como têm o cuidado de nunca apertar a tarraxa em demasia, mantendo sempre a
folga suficiente para que, nos actos eleitorais, haja um simulacro de
legitimidade e que continuem por lá, prometendo o que sabem não ir cumprir,
sorrindo publicitariamente ao tal povo sereno.
Vejo
apenas duas formas de acabar com a tarraxa e com as decisões tomadas em nome do
povo mas que não o beneficia:
Abrir
o parlamento aos cidadãos, para que as leis e o seu colocar em prática sejam,
de facto, a expressão da vontade do povo. Terminar com o monopólio legislativo
de entidades privadas e deixar que seja o povo a decidir e executar.
Impossível,
esta opção! Que implicaria que as leis fossem alteradas. E quem faz as leis,
agora, são os que detêm o monopólio.
Claro
que poderia ser posta em prática quebrando e infringindo as leis vigentes para
serem refeitas por e em prol do povo. Mas quem detém o poder conta com esta
alternativa e mantém sob controlo o que o mantém no poder: justiça, polícias e
militares. A força! Os que possuem o poder físico e legal para manter o sistema
controlado.
E,
para quem acha que isto é falso, veja-se com a tarraxa tem sido apertada diferentemente
para o tal “povo” e para as tais instituições que asseguram a manutenção do
poder.
A
tomada do poder pelo tal “povo sereno” implicaria que deixasse de ser sereno e
que aceitasse correr o risco de confrontos físicos com o poder vigente e a
forma de o executar.
A
história bem recente de outros povos tem-nos mostrado onde tal acção pode
levar. Pode ser uma solução, mas com custos, a muito curto prazo, muito
elevados.
Outra
opção passa por não reconhecer ao poder o poder que tem. Não aceitar que o
exerça, mesmo que se mantenha por lá. Ignorar as suas decisões e leis, fazendo
o tal povo sereno a sua própria vida como se ele lá não estivesse.
Dá-se
o nome a isto de “desobediência civil” e o poder não gosta dela. Que obriga a
usar os braços da lei sobre quem não cumpre. Sobre muitos que não a cumprem. E
usar da força sobre quem a não pratica. Sobre quem é “apenas” sereno.
É
uma opção que nada tem de original e com custos pesados, que o poder não cede
de bom grado.
Mas
“O Povo é sereno”!
E
enquanto o vai sendo, as elites dirigentes e as que aspiram a o ser vão
planeando o seu próprio futuro alicerçado na serenidade do povo.
Ontem
comemorou-se o primeiro aniversário de uma hipotética quebra de serenidade.
Alguns,
poucos, compareceram para o celebrar e tentar acabar com o apodo criado por
Pinheiro de Azevedo. Com ideias e projectos.
Mas,
enquanto mais não for que uma efeméride, com ou sem fumaça, e houver uma côdea
de pão, mesmo que rijo, o Povo vai continuar a ser sereno e, serenamente, a
deixar-se levar por interesses que não são os seus.
By me
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