domingo, 22 de setembro de 2013

Em trânsito



Rondavam a mesma idade: vinte anitos, mais coisa, menos coisa.
Ambas sentadas à minha frente, no comboio, contrastavam entre si como azeite e água.
Uma, dita “gótica”, era toda preto e branco. Preto no vestuário, em que o branco aparecia apenas na sola das sapatilhas. E no tom de pele, que não deveria saber o que é sol há bem meio século.
A outra, também morena, mas com um ar rural, vestida com um vestido estampado em tons de rosa e verde pálidos.
Tinha esta, por enfeites, um par de brincos metálicos, com uns brilhantes, que me pareceram mais pechisbeque que outra coisa. Cara lavada, unhas não pintadas.
A de preto, sentada à minha frente, também de cara e unhas virgens, tinha tatuado no peito, que o decote em barco bem deixava ver, um morcego preto, com olhos vermelhos. Simétricos, no lábio de baixo, dois piercings metálicos. Nos lóbulos, brincos pretos, de massa.
Na mão de cada uma, um aparelhómetro de comunicação portátil. Um preto, como seria de esperar, estava ligado aos ouvidos e deveria ir jorrando música. Suficientemente baixo para que não a ouvisse eu.
O outro era cor-de-rosa, parecido com o do vestido, e estava a ser usado para ler mensagens.
A outra mão de cada uma segurava uma mala. Uma, uma mala ou saco, de pano preto, de alça bem comprida, decorado com caveiras em branco e vermelho.
A outra, se bem que tivesse a sua malinha no colo, segurava uma mala de viagem na coxia, não fosse tombar com os solavancos.
Saiu esta numa estação, na cidade. Ao levantar-se, endireitou o vestido atrás e, pela velocidade e decisão com que caminhou no cais, não teria muito tempo até ao autocarro de longo curso que supus que iria apanhar.
A outra levantou-se na estação seguinte. Mesmo que o saco fosse bem descido, a bater-lhe no joelho, o cós das calças de ganga preta fora subidos atrás, tapando pudicamente o elástico das cuecas, azul-bebé. Que contrastava com as rendinhas pretas que exibia de um lado e do outro das asas do morcego. O seu passo era de quem caminha para onde é obrigada, quiçá um emprego.
O que ambas tinham em comum era a dificuldade em tirarem os olhos da minha barba, branca, e do que trago na lapela, um Azinho em preto e branco. Estive vai-não-vai para lhes explicar o seu significado, mas não sei se aceitariam a conversa ou se o entenderiam.

É por estas, e por todas as outras, que gosto tanto de andar de comboio, suburbano ou longo curso. Que o mundo está ali, na lombriga metálica, com todas as suas diversidades e contrastes, partilhando bancos e coxias.


By me

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