quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Velharias eternas



Entra Todo o Mundo, homem rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que se lhe perdeu; e algo após ele um homem, vestido como pobre, este se chama Ninguém, e diz:

Ning.:
Que andas tu aí buscando
T. Mund.:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando.
por quão bom é porfiar.
Ning.:
como hás o nome, cavaleiro?
T. Mund.:
Eu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é busacar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.
Ning.:
Eu hei Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que Ninguém busca consciência,
e Todo o Mundo dinheiro.
Ning.:
E agora que buscas lá?
T. Mund.:
Busco honra muito grande.
Ning.:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ele já.
Belzebu:
Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo,
e Ninguém busca virtude.
Ning.:
Buscas outro mor bem qu'esse?
T. Mund.:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ning.:
E eu quem me reprendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu:
Escreve mais.
Dinato:
Que tens sabido?
Belzebu:
Que quer um extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser reprendido.
Ning.:
Buscas mais, amigo meu?
T. Mund.:
Busco a vida e quem me dê
Ning.:
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu:
Escreve lá outra sorte.
Dinato:
Que sorte?
Belzebu
Muito garrida
Todo o Mundo busca vida,
e Ninguém conhece a morte.
T. Mund.:
E mais queria o paraiso,
sem mo ninguém estovar.
Ning.:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu:
Escreve com muito aviso.
Dinato:
Que escreverei?
Belzebu:
Escreve
Que todo mundo quer paraíso,
e Ninguém paga o que deve.
T. Mund.
Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ning.:
Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato:
Quê?
Belzebu:
Que Todo o Mundo é mentiroso,
e Ninguém diz a verdade.
Ning.:
Que mais buscas?
T. Mund.:
Lisonjear.
Ning.:
Eu estou todo desengano.
Belzebu:
Escreve, ande lá, mano.
Dinato:
Que me mandas assentar?
Belzebu:
Põe ai mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.



Texto: in “Auto da Lusitânia”, by Gil Vicente, séc. XV
By me

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