Passou,
um destes dias, um programa da série “Cuidado com a língua” que usava a
fotografia como tema.
Vi-o,
revi-o, pensei-o e enviei para a produtora do programa a mensagem que a seguir
transcrevo.
Senhores:
Quando
vi o vosso programa usando a fotografia como tema para bem usar a língua
portuguesa, fiquei entusiasmado. “Este programa”, pensei, “quero eu para usar
como referência sobre alguns disparates que se vão dizendo.”
Acontece
que quando vi o programa não o estava a ouvir. Só alguns dias depois, e através
do sitio da RTP o pude fazer. E logo mudei de opinião.
Que
este programa não quero eu nem o irei usar como referência. E explico o porquê.
Começando
logo com alguns erros técnicos “de palmatória”: o trabalho de laboratório,
nomeadamente a positivação em papel da imagem, não pode ser sempre feita sob
luz de segurança. Apenas quando se usa papel ortocromático, vulgarmente
conhecido por “preto e branco”, isso é possível. No caso da fotografia ampliada
para papel a cores, que é pancromático, isso é impossível.
(Se
os termos “ortocromático” e “pancromático” parecem palavrões técnicos, veja-se
um pouco de história e saiba-se o significado e origem dos prefixos “orto” e
“pan”.)
Ainda
dentro do laboratório, saiba-se que a “luz de segurança” usada não tem que ser
obrigatoriamente vermelha. Alguns tipos de papel fotográfico ortocromáticos
permitem usar lâmpadas ou lanternas de segurança verde-amarela. O que,
acrescente-se, é quase o que se pode deduzir pelas imagens que nos apresentaram
aquando da revelação do papel: o tom geral da imagem é bem mais
amarelo-esverdeado que vermelho. Não seria fácil fazer a captura de imagem com
luz vermelha, que tem muito pouco rendimento luminoso, mas um qualquer filtro na
câmara ou o correcto tratamento posterior em edição fariam o serviço.
Em
seguida, uma velha discussão: imagem analógica e imagem digital.
Toda
e qualquer imagem fotográfica, digital ou não, é analógica. Existe sempre
analogia entre a imagem captada e o respectivo assunto. E toda e qualquer
imagem fotográfica só é visível depois de revelada. Ou, e como bem disseram,
depois de “retirado ou véu”.
A
diferença está em que a imagem captada em película necessita de “revelação”
química e a captada por meios eléctricos necessita de “revelação” electrónica.
Os processos de codificação e descodificação dos diversos tipos de formatos de
imagem digital são, efectivamente, o revelar da informação que foi produzida
pelo sensor da câmara que, antes de ser objecto desse tratamento, se encontra
invisível. Ou “velada”.
O
termo correcto para a fotografia captada em película será, se outro não
quiserem usar, “foto-química”. Ou “… em película”.
O
uso da expressão “fotografia analógica” surge apenas após a criação da
fotografia electrónica ou digital e só porque haveria que dar um nome para
diferenciar os processos de produção e respectivo arquivo dos processos
intermédios.
Porque,
e em olhando para duas boas fotografias, uma dita “analógica” e outra dita
“digital” e já impressas, não se saberá qual ou quais os processos empregues. E
ambas são analógicas, com toda a analogia ou semelhança entre o que nelas vemos
e os assuntos fotografados.
Sobra
uma questão velha de séculos: câmara ou máquina fotográfica.
Foi
pena que em tudo o que disseram sobre a origem do termo “câmara”, se tivessem
esquecido da “mãe” de todas as câmaras de produção de imagem: a câmara obscura.
Aquilo
que é mais popularmente conhecido a seu respeito é o que nos conta Leonardo
DaVinci. Mas os seus princípios remontam à antiguidade chinesa, à antiguidade
grega, aos primórdios da cultura islâmica: um local escuro, com um orifício,
que permite produzir uma imagem real, invertida e, geralmente, menor que o
objecto.
A
câmara fotográfica é isso mesmo; um local fechado à luz, onde ela entra por um
espaço controlado, orifício simples ou com lentes compondo uma objectiva,
produzindo uma imagem real, invertida e registável.
E
se a história e origem dos termos não servir para definir o termo certo,
considerem-se dois exemplos: o cinema e o vídeo. Se os termos para identificar
os sistemas de produção e captação de imagem cinematográfica ou videográfica
são “câmara de cinema” e “câmara de vídeo”, porque se há-de usar “máquina” para
a que lhes deu origem? Porque tem um “mecanismo”? Bem, a de cinema tem mecânica
bem mais complexa que a de fotografia.
Sei
que esta questão é velha, quase tanto quanto a fotografia. Mas, e muito
curiosamente, é uma disputa que apenas existe em Portugal. Ao que sei, em
nenhuma outra língua este problema se levanta, sendo o termo “câmara fotográfica”
aceite como o único.
Faltou
referirem duas outras questões, igualmente polémicas e linguísticas: o uso da
expressão “velocidade de obturação”e o termo “lente”.
“Velocidade”
é uma relação de qualquer acto em função de uma unidade de tempo. “Velocidade
de sedimentação”, “velocidade de um automóvel”, “velocidade de escrita”. Quanto
tempo para se obterem todos os sedimentos, quanto espaço se percorre por hora,
quantas palavras se escrevem por minuto. É sempre qualquer coisa por unidade de
tempo.
Acontece
que aquilo que se regula numa câmara fotográfica é apenas o tempo que o alvo,
película ou sensor, está exposto à luz. Apenas isto. Ajuste de tempo. Todo o
mecanismo que destapa e volta a tapar o alvo se movimenta à mesma velocidade,
seja qual for o ajuste que façamos. Que se trate de câmaras com obturador
central (no interior da objectiva) quer se trate de câmaras com obturador
plano-focal (no interior da câmara e junto do alvo).
Aliás,
e em casos de dúvida, veja-se como esta tal “velocidade de obturação” é
expressa: unidades de tempo. 1/500 de segundo, meio segundo, três minutos…
Nunca uma referência qualquer coisa por tempo, como a luz (300000 quilómetros
por segundo).
O
termo “lente”, em questões de óptica, refere um pedaço de material, permeável à
luz, cujas faces opostas não são paralelas. É um sistema óptico simples, cuja
função é alterar a direcção da luz de uma forma controlada. Usamos lentes nos
nossos óculos, usamos lentes nas lupas de aumento, usamos lentes (desta feita
do modelo “fresnel”) na iluminação frontal de um automóvel ou num farol de
costa.
Aquilo
que as câmaras fotográficas possuem são conjunto ópticos, compostos de várias
lentes de posição ajustável, as mais das vezes acrescidos de um mecanismo de
controlo de fluxo luminoso a que damos o nome de “diafragma”. Alguns destes
conjuntos possuem ainda o obturador no seu interior.
A
estes conjuntos, complexos, dá-se o nome de objectiva.
A
vulgarização do termo “lente” como sendo o sistema óptico que possuem as
câmaras fotográficas (ou de cinema ou de vídeo) é um anglicismo a partir do
termo “lens”.
A
língua é uma coisa viva, evolutiva. E bem mais importante que o academismo é o servir
para comunicar.
Podemos
chamar a uma objectiva “batata frita” e intitular o tempo de exposição de “ovo
estrelado”.
É
indiferente que palavras usamos desde que nos entendamos. E muito brincam as
crianças com isso, criando códigos de comunicação “secretos”, com palavras inventadas
ou corruptelas da língua.
Mas,
em termos profissionais ou quando se quer ensinar o uso de termos ou expressões
“correctas”, convém ser-se rigoroso no que se transmite. Quiçá recorrendo a
várias fontes de informação, científicas e credenciadas.
Ou
então assumir que se trata de opinião, passível de contestação como esta que
vos envio.
Não
sou um lente na matéria, mas tão só um curioso. Mas custa-me ver ser dado como
certo o que não o é, acrescido da responsabilidade dessas afirmações serem
divulgadas pela televisão com o peso do rigor que um programa didáctico tem.
Como
nota final: este texto ou missiva foi escrito ao desabrigo de qualquer acordo
ortográfico. Assumidamente como tal. Mas também não me entendo como um
especialista em ortografia.
Espero
que o vosso programa continue a ter a efectiva simpatia e aparente simplicidade
que nos cativa.
JC
Duarte
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