sábado, 29 de novembro de 2014

D'arquivo



O texto abaixo escrito tem quase dez anos. Fui tropeçar nele em olhando os arquivos. Tal como a imagem que o acompanha.
Se o escrevesse hoje as únicas alterações seriam formais: português e organização de ideias. Porque elas estariam lá por inteiro.
O único acréscimo seria o referir a internete e as redes sociais que, à época, não tinham o impacto que têm hoje.
Quanto ao resto, aqui fica tal como o encontrei.


O texto que se segue foi escrito durante um almoço e concebido para ser uma resposta personalizada a uma dada situação.
Mas ao passá-lo pelo teclado e em relendo-o, entendi que era bem mais abrangente que apenas o seu destinatário, pelo que aqui vos o deixo na íntegra.

Companheiro:
Vejamos então se nos entendemos nestes mal-entendidos.
Por um lado não sou dono da verdade. Aliás, não posso ser dono de algo que não conheço nem sei se existe. Tenho apenas opiniões que, até encontrar uma em contrário que me convença, funcionam como orientações de pensamento e comportamento. Para mim mesmo.
O mais que pode acontecer é, em divulgando o que penso, encontrar outras pessoas que partilhem os mesmos ideais e pensamentos. E, em conjunto, dizermos: “Esta é a nossa forma de ver este assunto, partilhamo-lo e, como tal, esta é a nossa “verdade” aqui e agora!”
E isto assim será até que os conceitos mudem em alguns e a “verdade” de agora o deixe de ser, passando a “engano” face à nova “verdade”. Até que uma outra sobrevenha.

Pegando agora no caso concreto: Se eu fotografo ou não desconhecidos e em que circunstancias. Sobre isto há que ver várias abordagens e os seus contextos.
A minha atitude de base é: o indivíduo deve ser preservado na sua reserva de intimidade!
Esta é uma abordagem genérica mas não dogmática.
Se alguém vem a um local público manifestar-se, pretende que o seu manifesto seja conhecido. Falamos aqui de actores, políticos e manifestantes anónimos que se juntam para darem a conhecer ao colectivo os seus pontos de vista. O acto de os fotografar e divulgar estas imagens vai ao encontro dos desejos dos fotografados, já que com as imagens recolhidas e divulgadas as mensagens vão mais longe e a mais gente.

No outro extremo da escala estão aqueles que nem sequer têm possibilidade de se reservarem ou preservarem dos olhares estranhos, quanto mais dos fotógrafos. Vagabundos, pedintes, sem abrigo, etc., que fazem da rua a sua casa, não tanto por opção mas antes por impossibilidades (de ordem vária) de escolher. Estes não podem decidir quando ou o que querem partilhar da sua vida – e de si mesmos – com estranhos.
É com estes e nestas circunstancias que o meu pudor se manifesta com mais intensidade, impedindo-me - ou quase - de os registar em imagem.
Eu sei que o destino das minhas fotografias é, em regra, o meu arquivo, eventualmente uma divulgação muito restrita. A única consequência dessas imagens que eventualmente eu pudesse fazer seria em meu próprio benefício, mostrando o quão sensível ou bom fotógrafo eu posso ser.
Estes fotografados, porque indefesos e involuntariamente expostos, em nada lucrariam com elas que não fosse uma diminuição da sua privacidade e, em constatando o seu fazer, um aumento da sua sensação de infortúnio.

A única circunstância em que cedo e refreio estes meus escrúpulos é quando me encontro, enquanto fotógrafo ou técnico de imagem, ao serviço da informação. Sei nessas ocasiões que as imagens que recolho irão beneficiar, senão o próprio retratado, o conjunto das pessoas que se encontram naquela situação, em campanhas de mitigação da pobreza. Aquela quebra de privacidade ou intrusão na intimidade não será inconsequente nem para meu único benefício ou glória.
Apesar disto a cada momento pondero os prós e os contras e, por vezes, o meu pudor nessa intrusão prevalece. E não o faço. Com os amargos de boca e profissionais que já me tem trazido esta atitude.

Entre um extremo e o outro (os que se expõem e os que não podem deixar de se expor) existem todos os outros, mais perto de uns ou dos outros.
A minha opção, enquanto fotógrafo particular, privado, amador ou o que lhe queiram chamar, é a de que as coisas boas devem ser partilhadas, enquanto que o sofrimento se e só se quem sofre assim o entende.
O sorriso, a alegria, a felicidade, a bondade são estados de alma que cada um que o vive quer por certo partilhar. Donde, confrontado com estas situações, não me sinto um intruso com a minha câmara. Usá-la e com o conhecimento dos fotografados é fazer chegar mais longe o seu estado de espírito, coisa que, regra geral, eles desejam.

Claro que no meio de todas estas considerações de carácter pessoal (repito que esta é a minha opinião e forma de comportamento) ainda existe a lei e o bom-senso.
A lei preserva, para além de qualquer dúvida ou interpretação, o direito à reserva da imagem. O ser-se fotografado depende da vontade e consentimento do próprio e do lugar e circunstâncias em que se encontre. E mesmo no que à comunicação social diz respeito - e ao seu direito e dever de informar -, é particularmente discutível se podemos (se eu posso) fazê-lo sem consentimento.
O bom-senso leva-nos, aos profissionais ou amadores de imagem, a sermos capazes de interpretar os olhares, as expressões, os gestos e as palavras de assentimento ou negação dos nossos alvos e a respeitarmo-los.
E o respeito pela vontade e opinião do próximo é algo que devemos ter sempre presente, na fotografia ou na vida, se queremos ser respeitados.

Como disse logo no início, não sou dono da verdade, até porque não a conheço.
Apenas sei o que penso e sinto, tentando passá-lo aos outros e, de alguma forma, demonstrar a validade dos meus argumentos.
Mas cada um é livre, como eu mesmo o sou, de concordar ou discordar, de agir em conformidade ou em oposição. Considerando sempre que para cada acção há uma reacção, quer se trate de sentimentos ou de atitudes materializadas.

Como se depreende de todo este arengar, o poder de síntese não é um dos meus predicados. Nem o tema é fácil de abordar em meia dúzia de linhas, que a Ética é algo de complexo e tão volátil e mutante quanto as civilizações.
Em qualquer dos casos, o que acima fica exposto corresponde, mais coisa, menos coisa, ao que penso.
Aqui e agora!
Nada me garante que amanhã, face a outros argumentos, não me desvie desta linha e, quiçá, assuma uma posição diametralmente oposta.

Porque de contradições é o ser humano feito e eu não passo disso!

By me

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