terça-feira, 12 de abril de 2011

Pedaços de que gosto



Estou em crer que já por aqui falei dele, mas nunca é demais.
Quando me encontro numa daquelas fases em que o enfado é geral, em que a falta de vontade de reagir é notória e que o que mais me apetece é “Não me chateiem”, recorro a um canto particular da minha biblioteca. Passo veloz pelos tratados, monografias, álbuns e literatura sortida (séria ou nem tanto) e vou até ali buscar um dos meus “amigos”.
Desta vez escolhi o Mário de Carvalho, com o seu “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”.
Aqui deixo um pedacinho. Não é o fulcro da estória, mas apenas um pedacinho. Recomendo, para estes estados de alma ou quaisquer outros:

“(…)
A televisão, nessa noite, exibia oferta sortida: um concurso em que um fulano tomava banho num composto espesso de banha de porco e dejectos de pardal e depois se lambia, com acompanhamento de morangos e felicitações dum vasto público; um filme em que o herói derrubava um bandido, lhe traçava as costas com cinco ou seis facadas horizontais, lhe sacava as costelas para fora e as partia, uma a uma com estalidos fortes e repulsão de matérias rubras; um programa em que um marinheiro regressava após vinte anos de ausência, com uma perna a menos devido à dentada dum tubarão e a mulher, recebendo-o de braços abertos, bradava: «Assim ainda gosto mais de ti, caraças!»; uma curta-metragem sobre o sentido de orientação da mosca drosófila.
Joel optou pela mosca drosófila, contra a vontade de Cremilde que preferia o marinheiro perneta. Não conseguiu adormecer, mesmo com o Lorenin. No escritório doméstico, quadra limpíssima e rebrilhante porque raramente frequentada, ligou o computador e conseguiu aceder a um jogo em que um boneco, uma espécie de sapo vermelho, com misturas de verme e lagarto, saltaricava por sobre um campo de minas. Ao segundo pincho, eis que pisou a mina. Catapum! Ruídos ásperos e pedaços sanguinolentos do sapo a esvoaçar pelo visor. Acordes da marcha fúnebre de Chopin. Joel desligou o aparelho e ficou a ver-se no reflexo do vidro do monitor. Fez caretas. Fez pose. Aborreceu-se.
(…)”

Nota extra – Não tinha aqui nenhuma mosca drosófila, pelo que recorri a um gafanhoto, fotografado lá no pátio de onde trabalho. Só por uma questão de coerência.

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