quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Um conto, por Jorge de Sena



Este é um conto breve. É mesmo brevíssimo. De resto, se não fosse breve, muitíssimo breve, correria o risco de não ser um conto. A obrigação principal dos contos, mais que dos homens, é conhecerem os seus limites.
Propondo-me escrever um conto breve, tão breve como este, é-me impossível dizer qualquer coisa de mim. A brevidade não permite essas expansões, quase sempre vaidade, em que sacrificamos uma narrativa a nós próprios. Ora, se há coisa que não goste de sacrificar, ainda que a mim próprio, é uma narrativa. Claro que narrar não é, como todos sabem, o suficiente para escrever um conto. Mas também não é, como todos reconhecerão, uma coisa absolutamente necessária: mais, se o conto é breve, brevíssimo, o lugar para a narrativa estreita-se de tal modo, que ela quase não cabe; e, se a forçássemos, ela, como a intromissão das nossas pessoas o faria, ampliava os limites - aqueles limites que é preciso conhecer - para além do razoável num conto breve.
Porque, reconheçamo-lo, a brevidade é tudo. A brevidade permite contenção, prudência, reticência, pudor. O pudor é essencialmente uma virtude breve.
Sem dúvida, porém, que as virtudes, mesmo breves, não são comportadas pela brevidade de um conto brevíssimo. Além de que é ponto assente e demonstrado que as virtudes são inteiramente alheias, como virtudes, à estética literária. E um conto breve é, acima de tudo, uma obra de arte, de arte literária, onde tudo se reduz ao efeito artístico.
Contudo, na brevidade de um conto é extremamente difícil, senão impossível, preparar um efeito. Se não queremos, e eu não quero, apenas contar uma anedota, os limites razoáveis não dão azo a tais preparativos. Estes, à semelhança da perda das virtudes, requerem preparação, embora a perda propriamente dita possa ser praticamente instantânea, quer seja sentida no momento em que se perde (a virtude), quer seja uma descoberta mais tardia, quando alguém descobre que lhe fazia falta alguma coisa («coisa» é um modo de dizer) que afinal perdera. Num conto breve é tão duvidoso caberem as virtudes, quanto é duvidoso que se percam.
Lembro-me que, uma vez, em Londres, eu procurava com os olhos, parado numa esquina, a estação de correio, que era por ali perto. Eu tinha-me informado, e era por ali perto. Então uma senhora de idade, com óculos de aro de aço e uma couve repolhuda esticando uma saca de malha, parou ao meu lado, voltou-se para mim, afastou os cabelos grisalhos e sujos que apareciam caídos do chapéu de feltro preto, sem forma mas pontudo, e perguntou-me onde era a estação de correio. Imediatamente o meu olhar, depois de ter fitado o casacão cinzento e os sapatos rasos com fivela grande, que eram o resto da imagem dela, percorreu os prédios - todos georgianos com janelas brancas nas paredes de outro branco - e viu a estação de correio. Apontei-lha, e a senhora agradeceu com efusão, e atravessou a rua. Quando ela atravessava, dei passos pelo passeio, e vi, numa montra que era uma janela, um chinês de porcelana, coberto de pó. E, repentinamente, voltei atrás, porque não tinha - verifiquei - nenhuma carta para deitar no correio (havia um marco de correio ao pé de mim) e não queria comprar selos (tinha selos no bolso).
Não posso esquecer a brevidade deste episódio, não por ser episódio, que o não é, nem sequer por eu saber ou não saber a razão de não poder esquecê-lo. Já pensei que isto se relaciona com o retrato de uma velha, que vi no jornal, não sei se no dia seguinte, assassinada numa estação de correio. Mas, se bem me lembro, a estação de correio era noutro bairro. É provável, todavia, que a razão (de eu saber ou não) resida apenas na brevidade, uma brevidade insignificante, insignificada, sem conteúdo algum, como o pudor, tão breve essencialmente.
Mas, reflectindo melhor, talvez que a brevidade não desculpe a ausência de atenção com que jamais aproveitei um acidente. A não ser que seja a hesitação natural (e já reflectida) em ver, neste acidente, um incidente. É uma diferença da maior importância para o conhecimento dos limites. E os limites, que é tão imperioso conhecer, eles só, e mais nada, nos autorizam as definições. Sem definições, a brevidade não existe, não se realiza, da mesma maneira que, com elas, não tem essência própria nem estrutura virtual. E um conto breve, brevíssimo, que seja a própria desistência de narrar (e narrar implica, reparemos, interpretar ou, pelo menos, escolher), e em que passemos incógnitos (embora não fora do tempo e do espaço), não sendo mais nada, será por certo a brevidade impreparada, a brevidade captada, a brevidade em si, tanto mais que, no caso presente, eu nunca mais tornei a ver aquela velha, mesmo que (a não ser que ela fosse a do retrato) outras vezes me tenha cruzado com ela na rua. Não muitas, nessa hipótese, porque parti pouco depois (exactamente pouco, não garanto que tenha sido) para a Bélgica. A brevidade, porém, isenta-nos de quaisquer perigos. Ora os perigos são, quase sempre, muito breves. Pelo que poderemos concordar em que este conto é brevíssimo.

Texto: by: Jorge de Sena, 1961
Imagem: by me

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