quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Pudores



A estação estava bem mais vazia que isto. Muito mais.
Nem estava com toda esta luz, que o relógio marcava umas 23.20h.
Tal como não estava uma composição parada no cais.
Nem sequer o episódio se passou no cais, mas antes na zona de bilheteira, no piso inferior.
Aliás, diga-se também, nada do que relatado aconteceu neste local mas num outro e em sentido inverso na rotina do casa-trabalho-casa.

Chegava eu àquela estação uns cinco minutos depois da passagem de um comboio. Àquela hora, aconteciam a cada 30 minutos, pelo que não tinha pressa alguma. Nem eu nem a mocinha que havia saído do autocarro junto comigo e que tinha o mesmo destino.
De cigarro na mão entrei na estação. Vazia. Ou quase. Que, junto a uma das máquinas de venda de bilhetes alguma coisa acontecia. Entre o segurança de serviço, um homem de uns trinta anos bem medidos e de uniforme habitual, e uma senhora, já perto dos quarenta, nem bem nem mal vestida, de óculos grossos, carteira, guarda-chuva branco alvo e lancheira verde e amarela. E um bilhete recarregável na mão. E lágrimas na cara.
Curioso (ou metediço) que sou, e não tendo pressa alguma, aproximei-me. O suficiente para perceber o que se passava mas sem ser demasiado metediço. Claro que fui.
A senhora chorava desalmadamente, acenando com o bilhete na mão e dizendo “E agora como é que vou para casa? E agora?”
Raios! Àquela hora, ou a qualquer outra, isso era problema sério. E cheguei-me, perguntando “Avariou-se o bilhete, foi?” Não seria coisa rara.
O discurso dela era pouco claro, por entre as lágrimas, mas entre o que disse e o que completou o segurança (que já eu ouvira dizer “não posso fazer nada”), lá percebi o drama.
Bilhete recarregável, viagens durante o dia a mais, falta de saldo para pagar o regresso.
E, entre outras coisas, lá lhe percebi a estação de destino. E que havia perdido este comboio que ainda fazia ligação com o autocarro. Coisa que o seguinte já não faria. Mas que lá ainda iria a pé. Mas até lá…
Entendi. Sempre eram umas oito estações, uma data de quilómetros para fazer a pé, fosse a que horas fosse. Menos ainda àquela hora, depois de um dia de trabalho e com um vento fresquinho.
Cheguei-me à frente: “Limpe lá essas lágrimas que vai para casa. Ora mostre lá o bilhete.” E, colocando-o no local da máquina, carreguei-o com a respectiva quantia. Não chegava a dois euros.
Ficámos os dois à espera do comboio no cais de embarque, no piso superior.
Para além do agradecimento, fugaz, junto da bilheteira automática, não mais lhe ouvi a voz. Nem nos partilhámos de forma alguma sequer numa carruagem. E lá a vi sair na estação que referira, algumas antes da minha.
Não sei ou desconfio o como irá resolver a questão, já que ontem foi dia 24, terça-feira, e o dia 1 só acontece no fim-de-semana. E, com ele, a chegada de salário.

Dizem os nossos governantes que o país está melhor.
Não se devem referir àquele em que vivo, que episódios destes continuam a ser frequentes. Ou mais frequentes ainda.
Tal como a fotografia não refere nem o local, nem a hora nem os intervenientes. Mas eu ainda tenho motivos éticos e de pudor para tal resguardo.


By me

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