Penso que tivesse
sido em ‘72, mas não garanto. Teria eu então uns 13 anos.
Sujeito a um voto
de secretismo solene, fui admitido nas actividades clandestinas de minha
família. Era de noite, suponho que após o jantar, e fui levado a um lugar
esconso e perdido na cidade. Uma plateia de cadeiras de café, frente a uma tela
branca dir-me-ia, hoje, que iria assistir a uma sessão de cinema. Mas o não
sabia na altura. O filme projectado, repito que em segredo, era o “Couraçado de
Potemkine”, realizado por Sergei Eisenstein. Na memória ficaram-me imagens de
muita gente, de grandes espaços, grandes edifícios, grandes máquinas, muito
fumo, grandes canhões, as escadas e o carrinho de bebé.
Não entendi, na
altura, que estava no Grupo Recreativo Ramiro José, algures por Entrecampos e
que estava presente num acto mais que ilícito: Ver um filme Russo. A censura e
a PIDE, ainda que mais brandos na altura, não tinham contemplações: tudo o que
viesse da Rússia ou cheirasse a comunismo, era proibido, pecado capital. E quem
a tal se associasse estava condenado aos quintos do inferno.
Mais tarde, não
muito mais, esta pressão política aliviou-se um pouquinho e tive uma outra
oportunidade. Em sessões culturais que o então cinema Império exibia às
quartas-feiras de tarde, fui ver um dos que encheu a sala a transbordar: “Ivan
o Terrível”, também de Sergei Eisenstein. A maior parte do filme vi-o sentado
nas escadas do 2º balcão, tal como outras dezenas (centenas?) de pessoas, que
as cadeiras estavam esgotadíssimas. Confesso que não me recordo de como tive
conhecimento da projecção, mas sendo proibido e sendo de qualidade, não poderia
faltar.
Anos passados,
estava acampado na Zambujeira do Mar, fui a um cinema local. Um armazém,
esvaziado dos produtos habituais, cheio de cadeiras desirmanadas, com um
projector de cinema portátil. A máquina encravou e a película queimou, o filme
era mau, mas muito nos divertimos: “Trinitá, o Cowboy insolente”.
Por essa época
vibrei, já que a cadeira também vibrava, com o “Terramoto”, no cinema Tivoli.
Apenas nesta sala em Lisboa poderia sentir-se todo o poder do filme, já que só
uma construção em madeira como aquela poderia vibrar com os sons ultra-graves
que acompanhavam as imagens.
Desta forma, entre
estes e depois destes, um pouco aqui, um pouco ali, fui tomando conhecimento
com a 7ª arte, mãe quase esquecida da televisão. No anonimato das grandes salas
de cinema, na clandestinidade dos centros culturais, nas romarias ao cinema
Quarteto ou numa sala multifonica de um centro comercial.
O cinema é o
cinema! Feito para ser visto e degustado “no escurinho do cinema”, sentado
entre desconhecidos ou não, no lugar que se escolheu ou que se arranjou mas, e
sobretudo, numa tela grande. Numa tela de vários metros por vários metros,
abarcando-nos com o seu tamanho. Os planos escolhidos, as velocidades dos
movimentos, a sequencia das imagens… Tudo isto está feito para uma tela grande,
para que uma plateia partilhe, de preferência em silêncio e sem pipocas, cada
som ou palavra, cada fotograma ou acorde.
Do ponto de vista
técnico-prático, pense-se porque motivo são tão raros os grandes planos (só a
cabeça) em cinema, e tão frequentes em televisão. Imagine-se o tamanho de uma
boca, sensual ou ameaçadora, enchendo um ecrã de uma sala prevista para 1500
pessoas.
Claro que a
primeira fila da plateia é de evitar. Quando não, acontece como me aconteceu,
passar todo um filme com a cabeça a rodar de uma lado para o outro, como quando
vi “Fernão Capelo Gaivota” no cinema Apolo 70. Aquelas gaivotas com 10 metros
de envergadura, esmagaram-me mas apaixonaram-me!
Claro que hoje a
industria tem produtos híbridos, destinados aos dois consumos: as salas
públicas e as domésticas. A qualidade sonora, os multi- ângulos, o poder ver
uma cena em particular e fora do contexto geral, são um acréscimo, uma mais
valia a colocar nos DVD’s, sob pena de ver reduzidos os ganhos. Também a pensar
nesse tipo de consumo privado, toda a linguagem cinematográfica foi adaptada,
tanto a visual como a sonora, alterando-se as escalas de planos, os ritmos das
sequências, as origens e os tipos de sons…A electrónica de consumo acompanha
(ou forma e induz) as tendências individualistas e consumistas. Disponibiliza
grandes televisores ou monitores de vídeo, que quase enchem uma parede mas que
esgotam, certamente, as linhas de crédito.
Mas comparar o
fósforo, o plasma ou os LEDs destes aparelhos com a reflexão de uma tela é
falar em linguagens diferentes. O conforto da intimidade paga-se com a
qualidade da imagem.
E com a banalidade
do acto. O cinema ainda é um acto social. Convidar alguém para ir ao cinema ou
ser objecto de um convite, resulta da selecção daqueles com quem queremos
partilhar algo de especial. Ainda hoje é banal melhorar a roupa ou a maquiagem
sob o pretexto de uma ida ao cinema, com algum amigo, namorada ou familiar. Uma
ida ao cinema implica uma decisão consciente, planeada, uma alternativa no
espaço e no tempo: no espaço que percorremos, no tempo de que dispomos. A
decisão toma-se, os bilhetes compram-se e, durante aquela hora e meia o mundo
deixa de existir (se os gadjets forem desligados). Nem telefones, nem
campainhas, nem choros de bebés nem cigarros nos afastam, nos distraem daquele
mundo que ali nos é contado, daquele convite a uma outra existência efémera e
imaterial.
Estarmos numa sala
de cinema é como quem está numa montanha russa: agarrados na cadeira,
usufruímos de todas as emoções sem nos podermos levantar, sem sairmos a meio.
Assim, tomamos toda a refeição, dos aperitivos à sobremesa, com a certeza de
que cada pedaço vale a pena e que o todo fará sentido, sem interrupções
endógenas ou exógenas. Uma ida ao cinema fica na memória como uma ocasião
especial, quase ficando cada fotograma para mais tarde recordar. E quando assim
não é, fica-se com as sensações da ambiência, da convivência, da companhia.
Quem se recorda
dos três últimos DVDs que viu?
Na imagem, o
excêntrico que controla o obturador do projector de 8mm e super 8mm que tenho.
Filme. Película mesmo. À moda antiga.
A excentricidade,
por cá, não é só neural.
By me