“…
Certo
dia, prostrava-se na laje da capela, junto ao altar, em profunda meditação,
entre leves gemidos pesarosos, ab imo pectore transportados, quando deu por que
o clarão de luz colorida que o vitral projectava junto de si tomava uma
intensidade forte e parecia deflagrar em pequenas chamas fosforescentes. E
antes de se erguer, num arrepio sobressaltado, uma ciência íntima dizia-lhe que
a capela estava cheia de presenças.
Estava.
O frade arregalou os olhos pela nave, amparado à colunata, o semblante franzido
de terror. Sentados pelos bancos, encostados aos genunflectórios, dispostos em
magotes, em torno das colunas, agrupava-se um ror de criaturas disformes e díspares
que o olhavam em sossego. De entre elas, poucas tinham o aspecto humano, sendo
as demais avantajadas de membros e de olhos, ou carentes deles, as peles
rugosas ou tufadas de estranha lã, as mãos em forma de garra, e em algumas
ondulavam cristas e caudas. Destas figuras, mostravam-se umas escuras ou baças
e resplendiam as outras, alumiando os recantos em volta.
Alçou
o padre uma cruz de pau, da fraqueza fez força, e brandindo-a sobre as
presenças que se lhe configuravam como a sexta legião dos demónios, entrou a
exorcisar, em altos e trémulos brados:
-
Adjurgoo ab te Serpens Imundissima…
Mas
uma personagem que, muito perto, na primeira fila, o olhava complacente,
cabeçorra enorme e rugada levemente descaída, as garras sobre os joelhos pontudos,
a cauda negligentemente ente os pésdisformes e escamados, meio escondida pela
capa fulva, interrompeu-o com blandícia:
-
Ts, ts, ts, meu amigo, deixemo-nos disso, sim?
O
padre perfilou-se, assombrado, incapaz de resistir àquela solicitação serena e
ficou-se hirto, a olhar, sem pinga de sangue.
A
figura voltou ligeiramente a cabeça e chamou, para trás.
-
Eh, lá, tu aí em baixo, chega-te cá!
Um
ser fulgurante, de feição sorridente e amplas barbas brancas irradiando paz e
bondade, levantou-se e caminhou pela nave, os dedos dos pés mal aflorando o lajedo.
Chegando perto da personagem que o havia solicitado, curvou-se um pouco e ficou
a aguardar.
-
Então durante todos estes séculos persuadiste estes pobres seres que eras um
deus único? – admoestou a estranha figura, com um profundo suspiro. E, após,
designando o frade com um ligeiro avceno:
-
Bom, leva lá este para o teu céu, ou lá como se chama, e procura-me depois, que
temos contas a ajustar…”
in
“Ignotus deus”, in “A inaudita guerra da avenida Gago Coutinho”, por Mário de Carvalho
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