Ao
longo da minha vida profissional tive algumas atitudes que, certas ou erradas,
foram originais.
Nem
sempre foram bem aceites, que Portugal não prima por aceitar algo fora dos canones
convencionais. E, convenhamos, não será muito cordato que um novato quebre
regras. Nem inconsequente.
Mas
quando estamos convictos das nossas razões os argumentos que nos apresentem têm
que ser muito convincentes para nos demover.
Eu
era muito novato, pelo que a história tem já muitos anos. Mas nessa minha
inexperiência algum crédito me fora dado para ser incluído na principal equipa
e colocado a fazer os trabalhos de maior responsabilidade e rigor.
Num
desses trabalhos foi-me pedido que com a minha câmara captasse uma fotografia
impressa, re-enquandrando-a. Reconheci a fotografia e o autor: Man Ray. E o
trabalho que fazíamos não era uma análise ao autor nem ao seu trabalho. A
fotografia seria usada tão só como um elemento do trabalho que fazíamos, sendo
que iria ser truncada selvaticamente.
Recusei.
Ou, se se preferir, cometi o sacrilégio, único, de me recusar a cumprir uma
ordem de um realizador.
E
argumentei: não tínhamos nós o direito de truncar, adulterar, subverter, um
trabalho de autor, tanto mais que os créditos não seriam atribuídos a quem de
direito. E se Man Ray tinha feito aquela fotografia, com aquele enquadramento,
proporções e contrastes, não tínhamos nós o direito de o deturpar.
A
discussão foi feroz. Tanto o realizador como o sénior de câmaras vieram à
conversa, o primeiro a dizer que era assim que ele queria e teria que ser
feito, o segundo a tentar fazer-me ver que a vontade do realizador é sacrossanta
e tem que ser cumprida.
Entendi
que não e mantive-me na minha. Teimoso é o meu nome do meio e entendia que
tinha razão.
Ao
fim de um pedaço, o responsável da área técnica mandou afastar-me dos
trabalhos, sendo substituído por outro operador. E lá destruíram o trabalho
criativo de Man Ray. Mas não com a minha colaboração ou cumplicidade.
Durante
mais de seis meses estive afastado daquele posto de trabalho, meio de castigo,
meio como forma de evitar que repetisse a gracinha de não respeitar ordens de
um realizador, mesmo que fosse para preservar a integridade de uma obra de arte.
Ainda
hoje entendo que tinha razão. A minha juventude de então não estava enganada,
nem nos motivos nem nos métodos. O trabalho de autor não pode, sejam quais
forem as razões usadas (excepto a análise ou critica) ser deturpado, aviltado,
subvertido. Seja na fotografia, na pintura, na música, na literatura, no cinema…
Passados
muitos anos, o realizador em questão, e numa conversa num momento de pausa de
um outro trabalho que fazíamos juntos, recordou o episódio. E disse-me que,
apesar de eu ter razão, o trabalho não poderia ter sido posto em causa. E que
eu deveria ter acatado as instruções, protestando de seguida. Menos ainda vindo
de um novato.
Sorri
e não contestei. Mas, cá por dentro, não mudei uma virgula: Novato ou não, o
trabalho de um autor não pode ser adulterado.
O
que esta fotografia tem a ver com esta história?
Que
é frequente que eu, confrontado com um trabalho arquitectónico, fico na dúvida
se devo ou posso assim o truncar, mostrá-lo parcialmente, excluindo a parte do
todo, fazendo com o meu enquadramento um outro pedaço da realidade que vivemos.
A
única justificação que me dou, nem sempre aceite por mim, é que a arquitectura,
para além do todo, é para ser vivida em cada pedaço, de acordo com o local em
que nos encontramos e a utilização que lhe estamos a dar no momento. E que o
todo raramente é feito para ser apreciado ou usufruído como tal.
Uma
fotografia de um detalhe arquitectónico no lugar de truncar, evidencia o que o
seu autor criou, estando a dar-lhe os créditos que raramente lhe são atribuídos.
Não
sei quem concebeu a estação de Roma-Areeiro, em Lisboa. Mas aqui fica o meu
reconhecimento por esse trabalho e uma feliz conjugação forma-função, dadas as
condicionantes impostas pelo dono da obra e o local onde foi implantada.
By me
Sem comentários:
Enviar um comentário