“Sr.
Augusto! Ponha-me a ler!” Tantas vezes disse isto!
E
o sr. Augusto olhava para mim, com aquele seu sorriso meu escondido p’la barba
e fazia-me a pergunta de sempre: “Quais foram os dois últimos que leu?”
E
eu lá lhe dizia: ou da cabeceira, ou o da secretária, ou o do comboio, ou até
mesmo aquele que havia deixado em meio tempos atrás e que agora havia pegado de
novo e terminado. Romance, ensaio, monografia, técnico…
Ficava
ele a olhar p’ra mim um nico, dava a volta à sua mesa, sempre cheia de livros e
papeis, e dirigia-se a uma estante de onde tirava um livro. Nunca questionei as
suas escolhas, excepto uma vez, que me entregou um livro de ficção científica,
edição inglesa. Disse-lhe: ”O meu inglês técnico é bom, mas já para ler um
destes… não sei não!” “Não se preocupe”, retorquiu-me. “Se não se der bem com
ele, devolve-mo.”
Não
devolvi!
Nem
esse nem nenhum dos que me pôs nas mãos. Parecia saber exactamente que parte de
mim estava sedenta de leitura e que livro haveria de a mitigar.
Comigo
e com muitos outros, que eu não era excepção. De pequenotes a já idosos de
bengala.
Aliás,
o cosmopolitismo da sua livraria, de produtores de conteúdos a consumidores de
conteúdos era assombroso. Escritores, pintores, fotógrafos, músicos,
professores… de tudo ali se podia encontrar, em particular ao fim do dia. Uma
espécie de remate cultural para aconchegar a noite.
Passava-se
isto no centro da minha freguesia suburbana, servida por uma via rápida e
comboio mas carente de uma livraria. Que ele abriu. Com porta p’ra rua e não
inserida num qualquer centro comercial. Livraria mesmo, que não vendia nem
canetas, nem cromos nem jornais nem DVDs. Livros!
E
dizia eu que o sr. Augusto era o meu livreiro.
Algum
tempo depois mudou-se. Para uma rua secundária nas imediações e para um espaço
menor, com a renda igualmente mais baixa. Mas sempre com o mesmo sorriso e
entusiasmo por livros, autores e leitores, que ali havia de todos.
As
grandes superfícies e os editores de literatura de cordel com as suas
exclusividades acabaram por lhe destruir o negócio.
Trespassou-o
e agora, naquele espaço, vendem-se livros e o que mais houver em torno do
exoterismo, seja de que continente e crença for.
Como
esta livraria, p’la qual tinha um carinho muito, muito especial, tantas outras
vão fechando.
O
tubarões da indústria livreira vão comprando ou associando-se às mais pequenas,
apondo-lhes o seu logótipo e impondo-lhes as suas selecções e opções de
negócio. Em alternativa, são as grandes superfícies, que compram edições por
atacado, que fazem saldos e preços de ocasião, que oferecem descontos em cartão
e créditos com empresas do ramo.
As
outras, as livrarias que são livrarias de livros e não de negócio, que se
relacionam com o cliente, fazendo-o assíduo e amigo da casa, que têm o que as
outras não têm, vão fechando. Uma hoje, amanhã outra, p’ra semana mais uma… inexoravelmente!
Calhou
agora a vez à Sá da Costa, na rua Garrett, em Lisboa.
Por
cada livraria, loja de artigos fotográficos ou laboratório que fecha, fecha-se-me
uma padaria da alma.
Não
creio que as troikas deste mundo ou os acordos tripartidos celebrados se
apercebam deste drama.
Que
em encerrando as livrarias, as bibliotecas, os quiosques, se encerram as bases
da cultura de um povo. Encaminha-se esse mesmo povo para as boxes domésticas,
com reality shows dramáticos, séries legendadas e novelas a granel. Para um
fast-food de cultura, estereotipado e asséptico, estupidificando quem o usa em
benefício das competitividades e tranquilidade política. Que quem não lê não
pensa e quem não pensa não contesta: produz, encarneira e ponto final.
E
da ausência de leituras (clássicos ou modernos, nacionais ou traduzidos) temos
como consequência, entre outras, os resultados recentes das notas de exames.
Não
sei que é feito daquele que me punha a ler, o sr. Augusto. Que o não vejo faz
anos. Onde quer que esteja, espero que não vá acompanhando o descalabro dos
livros e da leitura.
By me
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