Sigo por uma rua
que percorro muito raramente. Muito raramente mesmo. O bairro é semi-burguês,
com população envelhecida, muitas lojas agora fechadas, umas de vez, outras de
férias, e a fama nocturna não será das melhores.
O calor aperta e
cada sombra é um alívio, pelo que caminho junto às paredes, com calma e
observando onde estou e quem está, com uma pressa equivalente a quem está em
turismo na sua cidade-natal.
A dado passo quase
sou atropelado. Não por um carro, como se suporia, mas por um homem. Com uns
cinquentas bem medidos, saiu de supetão de uma porta, parecida com esta, mas
que não esta. A sua saída foi tão rápida que quase chocámos. O que teria talvez
por consequência, talvez, o ele deixar cair no chão o que trazia nas mãos.
Um tachinho de
alumínio, daqueles bem grossos, com uns vinte de diâmetro e uns cinco de alto,
já com marcas da idade, tanto de amolgadelas como de preto. Vinha dentro de um
saco, transparente, e ele fazia questão que a tampa não saísse do sítio, ainda
não parecesse preocupar-se com a possibilidade de entornar o seu conteúdo. Não
teria algum, certamente.
Conforme se
afastou, reparei que trazia um avental sem peitilho, caindo-lhe abaixo dos
joelhos. E no seu afastar, após os pedidos de desculpa habituais, cruzou a rua
e entrou num restaurante fronteiro.
Nada se passou que
não um daqueles incidentes banais, daqueles que nem sequer recordamos passados
dez minutos. Excepto…
Excepto que fiquei
a cogitar, considerando que pouco passava das quatro da tarde, se traria ele o
tacho de um almoço já comido, se o tacho de um jantar ainda por comer, se o
tacho de um almoço e jantar de todo um dia. Porque tudo indicava que tinha ido
entregar de comer a alguém residente nesse prédio.
E fiquei a pensar
que o ou os destinatários daquela refeição ainda tinham alguma sorte em a sua
pensão de reforma permitir encomendar, quiçá diariamente, o almoço ou o jantar
ao restaurante fronteiro. Tal como têm sorte em serem visitados diariamente por
alguém, mesmo que de avental comprido, para quebrar a rotina de um dia fechado
em casa. E de outro dia. E de outro dia. E de outro dia. E de outro dia. Até ao
dia final.
As portas aqui
desta rua, deste bairro, são curiosas, tão curiosas quanto quaisquer outras de
qualquer outro bairro. Pelo uso que têm, pelo cuidado na sua manutenção e nível
de segurança (note-se o trinco manual), pelos autocolantes nos vidros e
madeiras.
Mas todas as
portas desta rua, deste bairro, deste mundo, escondem particularidades que as
tornam únicas, nas felicidades e tragédias que a vida impõe.
By me
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