terça-feira, 3 de junho de 2008

Do outro lado


Tenho andado no dentista. Em regra vou lá de manhã, pelas nove horas, o que tem a vantagem de ser conveniente para o meu horário de trabalho e de não esperar por vez, já que serei sempre o primeiro.
O consultório, onde não passo maus momentos ao contrário do que seria de esperar, mas tão só vou reparar aquilo que se vai estragando, fica ali na Av. Almirante Reis, em Lisboa. À saída, e porque tenho tempo, vou-a descendo, passando pela zona dos Anjos, pelo Intendente e pelo Martim Moniz.
Na primeira, mesmo em frente da respectiva igreja, fica aquilo que conheço por “A sopa dos pobres”, que mais não é que uma cantina que fornece refeições aos pedintes, vagabundos e sem-abrigo.
A zona do Intendente, com o seu largo mal afamado, é zona clássica de putas e chulos, de há uns tempos a esta parte reforçados com a presença de drogados e respectivos comerciantes e traficantes.
O Martim Moniz é praça dominada pelo comércio de bijutaria, venda ou revenda de artigos de quinquilharia e para as lojas dos chineses e ponto de encontros do cadinho de culturas em que a zona velha da cidade se tornou. Nem bom nem mau, apenas isso, com indianos, africanos, orientais, com ou sem trajes típicos eles e elas, que partilham o espaço e as crenças com a capela secular e as tradições das encostas das colinas.
À hora a que costumo sair do consultório, é estranho constatar que a azáfama lá em baixo já é bem grande, sob o olhar vigilante e complacente dos polícias da esquadra que lá existe, que em redor da igreja já se vão juntando os que esperam pelo único momento agradável do dia (uma refeição quente) e que a zona do “ataque”, ferozmente patrulhada agora pelos cívicos, é agora apenas uma zona de prédios degradados e de pensões com pouco movimento. Que elas e eles subiram na avenida e mudaram de poiso. O “trottoir” passou agora, sob vigilância apertada dos que vivem de vender o sexo das outras, para a zona onde o meu dentista tem o seu espaço.

Acontece que hoje fui ao tratamento de tarde. Ao sair do consultório, pelas 17 horas, mais coisa menos coisa, percorri o mesmo caminho. Mas a “fauna” é outra. E bem mais abundante!
As putas estão a cada esquina, em grupos de duas ou de três (desculpem os mais sensíveis, mas não conheço nenhuma outra palavra que defina, com rigor, a sua profissão), e as abordagens aos potenciais clientes é bem mais agressiva. E a sua categoria etária sobe assustadoramente, sendo que nenhuma delas teria menos de 45 anos, com boa vontade. E com um ar de decadência que, provavelmente pela minha falta de conhecimento deste lado do mundo real, assusta qualquer um, por mais prevenido que possa estar.
Nas imediações da igreja, as movimentações já são outras, que os que por ali vão estando começam ou continuam a marcar o espaço onde irão colocar os seus cartões que farão de catre e coberta para a noite, tenha ela a clemência ou inclemência que tiver.
Não é, de facto, um ambiente que se recomende visitar, ainda que os riscos sejam pequenos, se alguns.

A questão que se me pôs, ao ir descendo a avenida, seria simples se o fosse: Como retratar aquele ambiente, com fotografias, sem invadir as intimidades daqueles que já não a têm ou que a vendem num quarto barato de pensão? É uma fronteira que não quero ultrapassar, não apenas por uma questão de pudor para com aquelas vidas que já não de sobrevivência mas tão só de existência, mas também porque a intrusão não é bem aceite nestes meios, como é de esperar.
Eis então que dou com este prédio onde se tenta, inutilmente, adiar a intervenção do camartelo para o erguer de um qualquer edifícios de escritórios, arrastando ou sendo arrastado pelos restantes que terão o mesmo fim. E, rapando do telélé, fotografei. Que aquelas existências, atarraxadas, fechadas, sem saída, pouco mais fazem que sonhar com apartamentos onde nunca entrarão e com um sol que apenas entrevêem nas vielas onde se arrastam ou reflectido nos vidros dos carros que as solicitam.


Texto e imagem: by me

Nota extra: nem imaginam a cara com que ficou o capataz da obra ao ver-me fazer esta fotografia, e como ficou a olhar para os canos recém-colocados, tentando, suponho, descobrir que ilegalidade teriam que justificasse o seu registo.

Sem comentários: