A
tarde estava simpática. Sem vento, o que aqui é raro, temperatura amena, sol
parcialmente encoberto mas não por muito tempo… simpática.
Decidi,
assim, ir dar uma volta p’las traseiras do prédio. Há ali um parque de jogos, já
meio degradado, mas também há florzinhas selvagens e mato qb para ficarem por lá
perdidos alguns sapatos.
Câmara
no ombro, reflector prata e negro no bolso, livro no bolso de trás do colete, e
fui.
Fiz
a volta do costume, olhando com atenção para o mato, agora já quase com meio
metro de altura nalguns pontos. Encontrei um chinelo. No topo do mato uma
azulinha prendeu a minha atenção e tratei dela também. E abanquei na zona de
jogos, que tem umas bancadas, nem boas nem más, para nos sentarmos e lermos, se
for esse o caso. Era para mim, mas não só.
Que
também por ali estavam abancadas algumas avós com os e as netinhas a correr e
jogar. Tal como algumas mães, com os recém-rebentos nos respectivos carrinhos.
Num canto, um grupo de jovens e adultos cantava, ao som de uma viola.
Eram
cânticos religiosos, com forte sotaque brasileiro, mas não me incomodava nem um
nico. O livro que encetei (uma compilação de várias comparações de esboços de
fotógrafos) absorveu-me de todo.
A
dada altura a mais velha (já cinquentona) do grupo ganhou coragem e,
aproveitando o meu levantar de olhos por via de um cigarro, aproximou-se.
A
pergunta de quebrar o gelo foi a do costume: “O senhor é fotógrafo
profissional?”
A
minha resposta deixou-a meio de lado: “Uso a fotografia para alimentar a alma.”
Não
desarmou e continuou, tentando mostrar interesse sobre fotografia. E eu fiz-lhe
uma maldade: mostrei-lhe as que tinha. Nas duas câmaras, a reflex, que ela
havia visto, e a de bolso. Abanou um nico com algumas, mas aguentou a pé firme.
E
tentou desviar a conversa para onde eu sabia que ela a levaria: religião. Teve
ainda mais azar.
Que
abordou a questão do remorso e do arrependimento e não foi capaz de digerir as
réplicas, agnósticas e racionais de todo, fazendo passar o arrependimento para
o aprender na vida e afirmando que a vida é felicidade, mesmo quando corre
mesmo mal.
Ainda
estava a tentar para de abanar quando lhe atirei com a artilharia pesada: que
somos um todo e quanto mais tentarmos fazer os outros felizes, mais felicidade
temos de volta, pois toda a acção tem uma reacção, e que o bem do individuo é o
bem do todo.
A
estocada final veio com a câmara, que tornei a retirar do ombro, e o pedir-lhe
para fazer uma fotografia dos seus olhos. Foi incapaz de recusar.
Depois
de feita e vista, e o nome anotado, duas desculpas esfarrapadas e quase que
deslizou para junto do grupo a que pertencia. Olhando de soslaio p’ra mim, como
que para ter a certeza que não haveria uma qualquer cauda escondida por sob o
meu colete ou que o fumo que eu exalava não cheiraria a enxofre.
Estes
catequistas de rua, ou de vão de escada, têm que estar preparados para, em
batendo a uma porta ou abordando um desconhecido entretido da vida a ler,
dançar de acordo com a música. E eu, quando estou p’raí virado, dou-lhes a música
toda, com ritmo, acordes, melodia e gran finale. E se a coisa funcionar, ainda
lhes ensino uns passinhos de dança.
By me
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