Tinha
ido às compras. É sabido que a melhor forma de fazer compras controladas, para
além de as fazer após uma refeição para que se não sinta tentado, é levar uma
lista. Eu levava: azeite, vinho, leite. Só líquidos.
Mas
à chegada ao local onde costumo abastecer-me, um outro líquido me apeteceu:
café. E encostei no balcãozinho que ali existe.
Para
ser honesto, não encostei no balcão. Fiz fila atrás de um rapaz que estava a
ser atendido. E que, por motivo ou outro, inverteu a ordem dos factores e pediu
no balcão antes de na caixa de pré-pagamento. Pouco importante, já que mais
ninguém ali estava para ser atendido e a simpática senhora estava a dar conta
do recado sem problemas.
E
foi nesse “dar conta do recado” que as orelhas se me arrebitaram. Depois de
explicar qual a principal diferença entre um pão-de-leite e um outro que ali
tinham, diz para o cliente:
“Desculpe,
mas houve um pormenor que se me escapou: disse que queria com ou sem manteiga?”
Eh
lá!
Este
não é vocabulário ou construção frásica habitual de ouvir vindo de trás de um
balcão. Nem pouco mais ou menos! E, para além das orelhas, apurei o olhar:
Vinte
e poucos anos, loira, de feições delicadas e gestos a condizer, sorriso que me
pareceu “não industrial” a espreitar-lhe no rosto.
Tenho-a
visto por ali, de há uns dois ou três meses a esta parte, não garanto se não
mais, nas incursões que faço ao supermercado. E, apesar de cobiçar
fotograficamente aqueles olhos bonitos, sei que o lugar e as chefias não gostam
destas coisas e nunca lhe propus o registo.
Acabando
de atender o rapaz, entregando-lhe a sandes e o sumo num saco, veio à caixa
onde eu estava. E sorriu, quando ao seu “Boa tarde!”, lhe respondi com o meu
habitual “Para si também: boa tarde!”
E
continuei com a maior desfaçatez: “Quero duas coisas. Para já um café cheio.” e
estendi-lhe a moeda. “A outra já lha peço.”
Não
verbalizou a curiosidade expressa no seu olhar, mas não se deu por achada. A
teimosia do cliente barbudo em não querer a palheta plástica e insistir na
colher de metal junto com o café já ali é conhecida, pelo que manteve o sorriso
e foi p’ra máquina do expresso.
Chegou
um cliente, depois outro, e ela com o olhar a perguntar-me o que mais queria
eu. E eu com um gesto de “já lá vamos”.
Quando
já não havia gente p’ra ser atendida, nem ouvir a conversa, lá lhe perguntei:
“Desculpe
o abuso, mas… que estudos tem?”
A
surpresa foi genuína, que a pergunta não é normal, mas lá me disse que queria
seguir um curso de economia mas que uma gravidez prematura tinha interrompido o
12º ano. Mas que agora, com a filha já mais crescidinha, iria retomar os
estudos.
Em
troca desta inconfidência, lá lhe expliquei que a sua expressão “houve um
pormenor que se me escapou” não é nada habitual de ouvir ali e que, p’la certa,
seria alguém que gosta de ler e o faz amiúde.
E
que sim, é verdade: que gosta de ler (muito), de escrever (muito) e de pintar
(também muito) e que entre o trabalhar e a lide doméstica não perde
oportunidade.
Não
fomos mais longe na conversa. A chegada de outros clientes que vinham por cafés
(os pasteis de nata saem bem mais cedo ou bem mais tarde) impediram o continuar
do quebrar da rotina e a satisfação do meu nariz comprido.
Mas
fiquei com vontade de ali voltar por outros líquidos (talvez cerveja em lata,
sumo em pacote e café cheio em chávena) para fazer o registo daqueles olhos
bonitos e mais uns trocos de conversa.
Que
é líquido que a leitura nos modifica os hábitos e os pensamentos. E os olhos e
as conversas bem o mostram.
By me
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