terça-feira, 15 de abril de 2014

Os pequenos anúncios



Entre os animais falantes
o poeta é o que mais
diz coisas interessantes
aos colegas racionais.

Diz-lhes que a luz é de gesso
que o norte pode ser o sul
que o avanço é retrocesso
e que o céu não é azul.

Diz-lhes que o espaço vazio
está todo por alugar
e que há poemas vagos
de inspiração limitada
em prédios de antologia
bem situados nas letras
com duas assoalhadas
vistas largas logradoiro
e porteira analfabeta
que serve de vasadoiro
é bem-falante e discreta.

Diz-lhes ainda que sabe
que por motivos urgentes
de autodemolição
há boas peças de pano
de padrão surrealista
a vender ao desbarato
no armazém dum artista
que as salda por desengano
a preços de fim de estação.

Informa também haver
senhora de meia idade
com alguns adjectivos
que deseja conhecer
para fins retroactivos
editor de posição
que não se meta em política
seja honrado quarentão
e tenha amigos na crítica.
Muito em segredo murmura
que uma donzela neurótica
com raiz de mulher dama
trabalha de literatura
e à luz do candeeiro
borda poemas eróticos
para consumo na cama.

Mais promete por um tema
já usado e descosido
três metros de bom poema
que sirvam para vestir
a pobreza envergonhada
dum menos favorecido
na sorte de produzir
mercadoria rimada.

Em palavras repassadas
de condoída tristeza
lança o apelo patético
duma viúva burguesa
que pede soro poético
para um filhinho que tem
trinta e seis anos de idade
e que se morre não sobe
ao céu da celebridade.

A fim de prestar serviço
à moral mais escorreita
denuncia o compromisso
duma família insuspeita
que prima pelo respeito
porte limpeza e decência
e que aluga ideias feitas
para curta permanência.

Assim relata o poeta
entre a oferta e a procura
as condições de hipoteca
da presente literatura.
Assim disfarça a miséria
fingindo que tem fartura
- que poesia é coisa séria
e se não for deletéria
poderá ser mordedura
que lhe inocule no sangue
não só veneno de cobra
mas três cruzes de lirismo
que virão minar-lhe a obra
e tolher de reumatismo
a pena com que depena
os patos do modernismo
que podem valer-lhe a pena.


José Carlos Ary dos Santos
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