segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Sobre um saco de roupa no chão


Para quem tiver dúvidas, aqui fica o aviso: Escrever é muito mais fácil que fotografar. E este é um exemplo!

Num domingo de Agosto, a meio do dia e no meu bairro tipicamente suburbano, deparo-me com isto: um montão de roupa no chão, ainda junto ao saco que, possivelmente a transportava. Isto num parqueamento do principal cruzamento local. E bem encostadinho a um carro.
Só por si, roupa caída no chão, muita ou pouca, é incomum. Tanto mais que o caixote de lixo mais próximo dista uns bons cinquenta metros, pelo que dificilmente se poderá argumentar que se trata de algo não recolhido pelos funcionários municipais.
Fica, assim, a dúvida do porquê de tal situação e várias explicações me surgem, qual delas mais rebuscada. Mas não será a vida, por si mesma, suficientemente elaborada para nos surpreender a cada momento?

Consigo imaginar que, num bairro como este onde é frequente ver gente a mudar de casa, este saco tenha caído no processo.
As campanhas que vão sendo feitas, de há muitos anos a esta parte, para que cada um seja o dono da sua própria habitação, têm levado muito boa gente a criar situações de insolvência perante os bancos, sendo que muitos são os que as abandonam, nem sempre com a mais das transparências no processo. O mesmo se constata no tocante a casas arrendadas, de onde, em chegando ao final dos prazos-limite, se zarpa rapidamente e pela calada, quantas vezes de noite ou num fim-de-semana, quando os senhorios ou seus representantes não estão por perto para impedir a partida dos incumpridores e ficar-lhes com os parcos haveres que possuem.
Sinais de uns tempos de crise, digam o que disserem os nossos governos, onde as precariedades de emprego, a insegurança e indefinição dos futuros, os salários baixíssimos, os gordos lucros de bancos e enormes incentivos ao consumismo desenfreado, conduzem a situações de desespero.

Também consigo imaginar que estas roupas, que ainda que usadas não estão sujas nem rotas, não estejam aqui por acaso.
Recordo vários filmes, que nunca tal assisti ao vivo, onde ela atira pela janela uma mala com roupa, seguida ou antecedida por livros, discos e outros objectos pessoais, num despejo público do companheiro. Não se trata apenas de uma publicidade ao repúdio como também um vetar ao escorraçado o pacato recolher dos eus pertences.
Estes actos, que deixam a privacidade da domus, são uma espécie de cerimónia pública de divórcio, o oposto da festa do casamento, a materialização de uma raiva por vezes por muito tempo contida, por outras explosão instintiva face a uma descoberta insuspeita.
Este assim expor de roupa no chão, colocada de tal forma que o automóvel, para se deslocar, tem que forçosamente passar-lhe por cima, leva-me a imaginar que o dono do carro seja o mesmo que terá usado aquelas peças de vestuário, algumas bem íntimas. E que este saco aqui tenha sido colocado assim de propósito, já que a distancia ao prédio mais próximo não permite um arremedo por janela.

Cabe igualmente na minha imaginação que este saco tenha sido colocado cuidadosamente no caixotão de lixo, a uns bons cinquenta metros de distância.
Mas que de lá tenha sido retirado por um dos catadores de lixo que por aqui existem. Aqueles que vivem do que os restantes jogam fora, alguns dos quais que não se limitam a recolher o supérfluo mas que chegam ao ponto de recolher os restos de alimentos.
Alguns conheço eu de vista, que habituais são nas suas rondas. Uns, mais industrializados, com pequenas camionetas ou automóveis, vão recolhendo o que encontram nos ou junto aos contentores, com algumas especializações pelo caminho – sucata, moveis e electrodomésticos, papel – outros, mais modestos, com um pequeno carrinho de compras numa mão e um gancho adaptado na outra, vão revirando o conteúdo dos grandes caixotes, na esperança de encontrarem e recolherem algo que possa valer alguma coisa.
Este saco pode ter sido retirado de um dos contentores, mas não por um dos “profissionais”. Estes não fazem a inspecção à distância nem deixam a sua zona de “trabalho” conspurcada. Curioso de notar que os que vivem das sobras dos outros se preocupam mais com o asseio do espaço público que aqueles que produzem esta matéria-prima de sobrevivência.
Assim, e a ser este o caso, tratar-se-à de um novato na actividade, alguém que possui ainda vergonha de o fazer, alguém que desceu a este ponto na escala social mas que ainda não se conformou com tal. Que se afastou pudicamente, para que não fosse notório o seu rebuscar.

Considerando estas três abordagens, e mais uma ou duas que sem grande esforço, conseguiria aqui explanar, pergunto-me que fotografia poderia eu fazer que as exemplificasse. Considerando que não vi ninguém nas imediações com ar de ser o dono, permanente ou temporário, do saco e seu conteúdo, considerando que não quereria alterar nada do que aqui vi e que o vi em passagem a caminho do trabalho.
Ainda fiz mais umas quatro imagens, jogando com perspectivas e fundos e todas com o telemóvel. Mas esta foi a que me pareceu menos má, estando ainda assim, bem longe de poder retratar com eficácia tudo o que me surgiu na mente ao olhar para isto.
Não tem dúvida: imaginar e escrever é bem mais fácil que fotografar!



Texto e imagem: by me

Sem comentários: