quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O chinelo


Já está aqui há mais de uma semana.
Mesmo em frente do café onde espanto o meu sono matinal, repousa encostado ao lancil do passeio, quase indiferente a quem passa.
E se digo quase indiferente é porque agora deve sofrer de solidão. Daquela triste e profunda. É que, quando o conheci por ali, estava acompanhado pela sua cara-metade, o chinelo do pé esquerdo, que jazia ali a uns vinte centímetros de distância. O divórcio aconteceu e ali ficou, o parente pobre e doente, acabado mesmo, à espera que alguém lhe dê um destino final.
Claro que me pergunto porque raio alguém foi levar um chinelo de um pé, deixando o seu par para trás. Bem sei que este de pouco poderá servir, mas levar um chinelo ou sapato e deixar o outro é, no mínimo, bizarro. Tanto mais que não conheço, aqui pelas vizinhanças, quem quer que seja a quem falte uma perna ou pé. Esquerdo ou direito.
Claro que poderá tratar-se de alguém com recursos mais que limitados, sem poder comprar um par destes chinelos e que, mesmo apenas com um desirmanado, se sinta feliz. Porque, afinal, o consumismo e as modas tocam a todos, com ou sem meios de satisfazer esta pressão social.

Mas eu olho para esta moda, importada de terras de além-mar, e fico-me a rir.
Com um desenho base idêntico, com mais ou menos decoração e variações de cores, não há veraneante imbuído do espírito de “não-quero-ser-diferente” que não ande com este pé de chinelo no pé. Que é bem e sinal de modernidade.
O que leva a concluir que as modas são cíclicas (há quem o afirme, defenda e pratique) ou, em alternativa, que eu e outros como eu somos ou fomos gente muito avançada para a nossa época. Porque, há mais de trinta anos, quando praticava judo, este era o calçado que usávamos para aceder dos balneários para o dojo e, no regresso, o que usávamos para tomar o duche após o treino, por via de eventuais contaminações de fungos do chão molhado.
Vendiam-se, então, nas drogarias, feiras e lojas de preços baixos, encontravam-se com dificuldade nas outras especializadas em calçado ou artigos desportivos. E ninguém teria a coragem ou ousadia de comparecer na escola ou trabalho com eles, os chinelos, nos pés.
Acredito que hoje, com o pedantismo que certas modas provocam, existam festas de chinelo, onde apenas serão admitas pessoas que os tragam calçados. E onde, para satisfação de algum fetiche escondido, todos observem, elogiem ou cobicem o chinelo do vizinho e o respectivo pé.
Quem sabe se o par deste não aparecerá numa delas, exibido qual troféu raro, já que o seu portador terá, no outro pé, um exemplar diferente, levando a moda do chinelo aos limites do “requinte” e “esquisitismo”.


Texto e imagem: by me

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