Este
é um conto breve. É mesmo brevíssimo. De resto, se não fosse breve, muitíssimo
breve, correria o risco de não ser um conto. A obrigação principal dos contos,
mais que dos homens, é conhecerem os seus limites.
Propondo-me
escrever um conto breve, tão breve como este, é-me impossível dizer qualquer
coisa de mim. A brevidade não permite essas expansões, quase sempre vaidade, em
que sacrificamos uma narrativa a nós próprios. Ora, se há coisa que não goste
de sacrificar, ainda que a mim próprio, é uma narrativa. Claro que narrar não
é, como todos sabem, o suficiente para escrever um conto. Mas também não é,
como todos reconhecerão, uma coisa absolutamente necessária: mais, se o conto é
breve, brevíssimo, o lugar para a narrativa estreita-se de tal modo, que ela
quase não cabe; e, se a forçássemos, ela, como a intromissão das nossas pessoas
o faria, ampliava os limites - aqueles limites que é preciso conhecer - para
além do razoável num conto breve.
Porque,
reconheçamo-lo, a brevidade é tudo. A brevidade permite contenção, prudência,
reticência, pudor. O pudor é essencialmente uma virtude breve.
Sem
dúvida, porém, que as virtudes, mesmo breves, não são comportadas pela
brevidade de um conto brevíssimo. Além de que é ponto assente e demonstrado que
as virtudes são inteiramente alheias, como virtudes, à estética literária. E um
conto breve é, acima de tudo, uma obra de arte, de arte literária, onde tudo se
reduz ao efeito artístico.
Contudo,
na brevidade de um conto é extremamente difícil, senão impossível, preparar um
efeito. Se não queremos, e eu não quero, apenas contar uma anedota, os limites
razoáveis não dão azo a tais preparativos. Estes, à semelhança da perda das
virtudes, requerem preparação, embora a perda propriamente dita possa ser
praticamente instantânea, quer seja sentida no momento em que se perde (a
virtude), quer seja uma descoberta mais tardia, quando alguém descobre que lhe
fazia falta alguma coisa (“coisa” é um modo de dizer) que afinal perdera. Num conto
breve é tão duvidoso caberem as virtudes, quanto é duvidoso que se percam.
Lembro-me
que, uma vez, em Londres, eu procurava com os olhos, parado numa esquina, a
estação de correio, que era por ali perto. Eu tinha-me informado, e era por ali
perto. Então uma senhora de idade, com óculos de aro de aço e uma couve
repolhuda esticando uma saca de malha, parou ao meu lado, voltou-se para mim,
afastou os cabelos grisalhos e sujos que apareciam caídos do chapéu de feltro
preto, sem forma mas pontudo, e perguntou-me onde era a estação de correio.
Imediatamente o meu olhar, depois de ter fitado o casacão cinzento e os sapatos
rasos com fivela grande, que eram o resto da imagem dela, percorreu os prédios
- todos georgianos com janelas brancas nas paredes de outro branco - e viu a
estação de correio. Apontei-lha, e a senhora agradeceu com efusão, e atravessou
a rua. Quando ela atravessava, dei passos pelo passeio, e vi, numa montra que
era uma janela, um chinês de porcelana, coberto de pó. E, repentinamente, voltei
atrás, porque não tinha - verifiquei - nenhuma carta para deitar no correio
(havia um marco de correio ao pé de mim) e não queria comprar selos (tinha
selos no bolso).
Não
posso esquecer a brevidade deste episódio, não por ser episódio, que o não é,
nem sequer por eu saber ou não saber a razão de não poder esquecê-lo. Já pensei
que isto se relaciona com o retrato de uma velha, que vi no jornal, não sei se
no dia seguinte, assassinada numa estação de correio. Mas, se bem me lembro, a
estação de correio era noutro bairro. É provável, todavia, que a razão (de eu
saber ou não) resida apenas na brevidade, uma brevidade insignificante,
insignificada, sem conteúdo algum, como o pudor, tão breve essencialmente.
Mas,
reflectindo melhor, talvez que a brevidade não desculpe a ausência de atenção
com que jamais aproveitei um acidente. A não ser que seja a hesitação natural
(e já reflectida) em ver, neste acidente, um incidente. É uma diferença da
maior importância para o conhecimento dos limites. E os limites, que é tão
imperioso conhecer, eles só, e mais nada, nos autorizam as definições. Sem
definições, a brevidade não existe, não se realiza, da mesma maneira que, com
elas, não tem essência própria nem estrutura virtual. E um conto breve,
brevíssimo, que seja a própria desistência de narrar (e narrar implica,
reparemos, interpretar ou, pelo menos, escolher), e em que passemos incógnitos
(embora não fora do tempo e do espaço), não sendo mais nada, será por certo a
brevidade impreparada, a brevidade captada, a brevidade em si, tanto mais que,
no caso presente, eu nunca mais tornei a ver aquela velha, mesmo que (a não ser
que ela fosse a do retrato) outras vezes me tenha cruzado com ela na rua. Não
muitas, nessa hipótese, porque parti pouco depois (exactamente pouco, não
garanto que tenha sido) para a Bélgica. A brevidade, porém, isenta-nos de
quaisquer perigos. Ora os perigos são, quase sempre, muito breves. Pelo que
poderemos concordar em que este conto é brevíssimo.
Texto:
By Jorge de Sena
Imagem:
algures na net
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