Faço
os cigarros em casa. Compro o tabaco em latas, os tubos já feitos em caixas e
uso uma maquineta muito simples para os encher.
Faço-os
na cozinha. A mesa, feita por mim, tem a altura certa para tratar do assunto, o
chão é mais fácil de limpar dos pedacinhos de tabaco que saltam, a luz não é má.
Acresce-se
que, a menos que esteja uma tempestade terrível ou um frio de rachar, mantenho
a janela sempre aberta. Ventilação, sentir o mundo lá fora nos sons e luzes… a
janela está sempre aberta.
Pois
estava eu entretido com este acto maquinal e oiço alguém dizer:
“Só
mesmo uma mulher para fazer isto!”
Fiquei
tanto mais alerta quanto a voz que o disse era feminina.
“Ai
que ele mata-me!” gritou outra voz, igualmente feminina.
Larguei
tudo. Bem, largar é uma força de expressão, que já tinha as mãos vazias quando
dei o primeiro de quatro passos que me conduziram à balaustrada da varanda.
Estas
duas senhoras espreitavam para debaixo do carro e a história ficou fácil de contar:
em fazendo marcha-atrás para estacionar, subiu o passeio e, com ele, uma ou
duas destas bolas de cimento que protegem os passeios dos automóveis.
Por
aquilo que ouvi, a porta ficou amolgada e o carro apoiado numa delas, não
podendo andar.
“Estas
malditas bolas aqui pespegadas!”, ainda ouvi uma delas exclamar, ao mesmo tempo
que a outra ia ver da criança que estava no interior, na respectiva cadeirinha.
Quando
voltei com a câmara, uma delas chamava, via telemóvel, o tal que “me vai matar”,
com um tom de voz de quase choro.
Enquanto
fazia o registo, sem ter a certeza se o usaria, foi-se juntando uma pequena
multidão de três mirones, dois jovens e um já bem velho, cada um alvitrando o
seu palpite mas em nada contribuindo para resolver a questão. Apenas para
aumentar o nervosismo daquela “que iria morrer”.
Voltei
para os meus cigarros. Sem pressa.
A
questão não era comigo, eu não poderia fazer nada de útil e havia que terminar
a tarefa.
Terminada,
voltei a cuscar.
O
tal que “iria matar” acabara de chegar, de carro com um outro. Espreita daqui,
espreita dali, mas nada de assassínios. Fiquei mais tranquilo e fui à minha
vida.
Uns
vinte minutos depois, mãos lavadas como compete, voltei a espreitar a quase
tragédia. Já tinha ouvido, para além da porta entre-aberta, uns acelerares
valentes, mas sem arranhar metal.
O
carro estava já assente nas respectivas quatro rodas, ali perto. Da minha
janela não conseguia ver os danos, mas as bolas de cimento não pareciam ter
sofrido nada demais.
Este
drama, esta tragédia viária, este horror conjugal terminou bem. Pelo menos
daquilo que pude presenciar.
Do
que sucedeu na intimidade do lar nada sei. Mas ainda não ouvi nem gritos, nem
choros ou sirenes de polícia e já passou quase uma hora.
Ironias
à parte, lamento profundamente que aquela mulher tenha tido tanto medo de
chamar o companheiro na sequência deste incidente.
Mas
isto é um bairro suburbano, onde o macho latino impera e onde “Não se toca no
carro de um homem”, como já me disseram uma ocasião.
Tristemente,
este incidente impediu que um dos habituais catadores de lixo fizesse o seu
triste mister.
Vi-o
aproximar, parar junto aos contentores, olhar um pouco, encolher os ombros já
curvados, e seguir para o seguinte na curva da rua, com o saco nas costas e o trólei
estragado a reboque. Este terá sido o verdadeiro drama!
By me
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