segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O drama! Atragédia! O horror!



Faço os cigarros em casa. Compro o tabaco em latas, os tubos já feitos em caixas e uso uma maquineta muito simples para os encher.
Faço-os na cozinha. A mesa, feita por mim, tem a altura certa para tratar do assunto, o chão é mais fácil de limpar dos pedacinhos de tabaco que saltam, a luz não é má.
Acresce-se que, a menos que esteja uma tempestade terrível ou um frio de rachar, mantenho a janela sempre aberta. Ventilação, sentir o mundo lá fora nos sons e luzes… a janela está sempre aberta.
Pois estava eu entretido com este acto maquinal e oiço alguém dizer:
“Só mesmo uma mulher para fazer isto!”
Fiquei tanto mais alerta quanto a voz que o disse era feminina.
“Ai que ele mata-me!” gritou outra voz, igualmente feminina.
Larguei tudo. Bem, largar é uma força de expressão, que já tinha as mãos vazias quando dei o primeiro de quatro passos que me conduziram à balaustrada da varanda.
Estas duas senhoras espreitavam para debaixo do carro e a história ficou fácil de contar: em fazendo marcha-atrás para estacionar, subiu o passeio e, com ele, uma ou duas destas bolas de cimento que protegem os passeios dos automóveis.
Por aquilo que ouvi, a porta ficou amolgada e o carro apoiado numa delas, não podendo andar.
“Estas malditas bolas aqui pespegadas!”, ainda ouvi uma delas exclamar, ao mesmo tempo que a outra ia ver da criança que estava no interior, na respectiva cadeirinha.
Quando voltei com a câmara, uma delas chamava, via telemóvel, o tal que “me vai matar”, com um tom de voz de quase choro.
Enquanto fazia o registo, sem ter a certeza se o usaria, foi-se juntando uma pequena multidão de três mirones, dois jovens e um já bem velho, cada um alvitrando o seu palpite mas em nada contribuindo para resolver a questão. Apenas para aumentar o nervosismo daquela “que iria morrer”.
Voltei para os meus cigarros. Sem pressa.
A questão não era comigo, eu não poderia fazer nada de útil e havia que terminar a tarefa.
Terminada, voltei a cuscar.
O tal que “iria matar” acabara de chegar, de carro com um outro. Espreita daqui, espreita dali, mas nada de assassínios. Fiquei mais tranquilo e fui à minha vida.
Uns vinte minutos depois, mãos lavadas como compete, voltei a espreitar a quase tragédia. Já tinha ouvido, para além da porta entre-aberta, uns acelerares valentes, mas sem arranhar metal.
O carro estava já assente nas respectivas quatro rodas, ali perto. Da minha janela não conseguia ver os danos, mas as bolas de cimento não pareciam ter sofrido nada demais.
Este drama, esta tragédia viária, este horror conjugal terminou bem. Pelo menos daquilo que pude presenciar.
Do que sucedeu na intimidade do lar nada sei. Mas ainda não ouvi nem gritos, nem choros ou sirenes de polícia e já passou quase uma hora.


Ironias à parte, lamento profundamente que aquela mulher tenha tido tanto medo de chamar o companheiro na sequência deste incidente.
Mas isto é um bairro suburbano, onde o macho latino impera e onde “Não se toca no carro de um homem”, como já me disseram uma ocasião.
Tristemente, este incidente impediu que um dos habituais catadores de lixo fizesse o seu triste mister.

Vi-o aproximar, parar junto aos contentores, olhar um pouco, encolher os ombros já curvados, e seguir para o seguinte na curva da rua, com o saco nas costas e o trólei estragado a reboque. Este terá sido o verdadeiro drama!

By me

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