domingo, 24 de agosto de 2014

Grafia - Photographia



Eu não tenho carta de condução.
Nunca aprendi a conduzir um automóvel nem nunca tentei conduzir um.
Se, no início e quando tinha idade para isso, não tinha dinheiro para a carta e muito menos para o carro, quando passei a tê-lo percebi que podia organizar a minha vida sem carro, tirando partido das vivências que os transportes públicos permitem. E são muitas e muito neles se aprende, garanto.
Mas muitos foram os que me perguntaram porque raio não tiro eu a carta, podendo fazê-lo.
A explicação é simples: não adianta ter a carta se não se praticar. O simples facto de ter sido aprovado em aulas de código e de condução não faz de mim um condutor. Apenas um encartado.
E sabemos todos que, se não praticarmos, o aprendido esquece-se. Passa do estado de “talvez saber” ao estado de “talvez lembrar”. Talvez nem tanto. Perigoso no caso de automóveis.

O mesmo se aplica em todas as outras áreas do saber. Teórico ou prático, científico ou subjectivo, do fritar um ovo ao erguer um prédio, passando pela fotografia, naturalmente.
De pouco adianta aprender técnicas e conceitos estéticos se não forem postos em prática amiúde, se não se fizer disso uma actividade em que o domínio desses campos seja algo instintivo, deixando para o acto de criar as questões de conteúdo e ocasião.
O papel do pedagogo passa por aqui: promover e facilitar o conhecimento e a prática de forma que do lembrar se passe a saber. E dar “ferramentas” a quem aprende para que possa manter esse saber activo e permanente.

No entanto, de pouco adiantam as melhores práticas pedagógicas, mais conservadoras ou mais revolucionárias, se não houver por parte de quem aprende vontade de tal.
É muito fácil trabalhar com crianças. Como todo o juvenil, possui muitas perguntas e ainda poucas respostas. Assim, basta ir satisfazendo essa curiosidade natural, dando-lhes as respostas às perguntas ou, melhor ainda, provocando-lhes novas perguntas para as quais queiram respostas.
Acontece que à medida que o juvenil se vai transformando em adulto, vai adquirindo respostas e perdendo o interesse nas perguntas. Chega mesmo a entender que tem todas as respostas a todas as perguntas.
E é aqui que o papel do pedagogo se torna mais difícil. Na maioria dos casos os estudantes adultos (aprendizes, formandos, alunos) não querem realmente aprender ou encontrar respostas a perguntas. Querem, antes sim, encontrar respostas a perguntas concretas e objectivas, de como solucionar esta ou aquela situação em concreto, deixando de parte os porquês envolvidos. Ou, e é legítimo, querem obter creditações que lhes permitam melhores condições de vida. Rapidamente e sem esforço.
O papel do pedagogo, nestes casos, duplica. Que, e para além de dar ou ajudar a encontrar as respostas, tem que fomentar as perguntas intermédias que conduzam à resposta final. Tem que provocar a curiosidade, tem que fazer com que haja dúvidas, com que brotem incertezas. E tudo isso sem que esses mesmos adultos se sintam manipulados no seu raciocínio. Ou que, ao senti-lo, tenham prazer nisso e disso tirem proveito.

Muito se tem falado, por cá e ao longo dos tempos, na actividade docente: das condições de trabalho, das remunerações, das turmas grandes, dos dinheiros disponíveis para o ensino, do acesso à profissão…
Mas pouco se fala da dificuldade do ofício, dos tempos extra-escola mas de trabalho, da adequação dos conteúdos aos tempos disponíveis, dos métodos impostos por entidades que desconhecem o que é trabalhar com indivíduos…
Que a pedagogia não é lidar com um montão de gente mas com cada um em particular, com as suas capacidades, dificuldades e características, levando a bom porto o objectivo comum na actividade: aprender. Muito para além das avaliações e quotas de sucesso.

Por mim, continuo a não querer ter carta de condução. Quero continuar a andar no meio dos meus iguais e tentar encontrar respostas às questões que se me levantam. Quero continuar a aprender.


By me

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