segunda-feira, 14 de março de 2016

Ilustrando um conto



Procuro manter um hábito de anos: Um textinho e uma fotografia a abrir o dia.
No entanto há que convir: nem todos os dias se tem criatividade para tal, logo às quatro da madrugada.
Assim, é frequente recorrer ao arquivo para essa primeira publicação diária. E quanto mais recuado melhor, para evitar repetições próximas.
Desta feita fui dar com um conto de Márcia Frazão, que a própria me enviou há mais de uma mão-cheia de anos.
Depois de o ter lido três vezes (que uma só soube-me a pouco, tal como os bolos), foi o tempo de ir fazer a correr uma fotografia ilustrativa.
Aqui os deixo, com a devida vénia à autora da prosa, que tem blog, face e etc. Procurem-na que vale a pena:

“Kafka e a nossa metamorfose

Quando Gregório Silva despertou numa certa manhã em que ouviu, no rádio, notícias sobre um castelo fincado no sertão mineiro, viu surgir o primeiro sinal da metamorfose: duas estúpidas anteninhas bem no alto da cabeça que o obrigaram a ir para o escritório com um gorro mais estúpido ainda. Se tivesse lido Kafka, ficaria em casa, daria uma desculpa ao chefe da repartição e não se prestaria a tal vexame. Mas como não lera e ainda por cima era só mais um brasileiro aterrado com o desemprego, preferiu pagar o mico e garantir o parco salário.
Se a pressa de chegar ao trabalho não lhe fosse prioridade máxima (os tempos eram duros e, por qualquer bobeira, o sujeito dançava), Gregório veria que as ruas estavam apinhadas de gorros. Mas o medo do desemprego o impedia até de olhar para os lados.
Assim, com os olhos voltados para uma frente que corria o risco de desaparecer a qualquer momento, Gregório foi vivendo a vida com a cabeça enfiada num estúpido gorro. Até que lá pelos meados do ano, quando o escalão maior do Estado decidia expulsões ingratas, legalizações transgênicas, reformas nebulosas e construção de mais uma usina nuclear, surgiu o segundo sinal da metamorfose: duas asas asquerosamente cascudas que o obrigaram a tirar do armário o velho fraque do casamento e com ele ir vestido para o trabalho. Se Gregório tivesse lido Kafka, teria a certeza de que estava se transformando em barata. Mas como o seu tempo era curto para as leituras e já deixara de ser dinheiro há muito tempo, preferiu seguir a sua vidinha de dívidas e prestações, achando que as asas não passavam de um mero desvio da coluna.
Ao contrário do herói de Kafka, Gregório não podia se dar ao luxo de se trancar num quarto e virar barata. O antigo chefe já havia dançado e entrara no seu lugar a esposa de um vereador, amigo do diretor. E foi exatamente a nomeação da tal mulher que provocou mais uma etapa da sua metamorfose: duas patas cabeludas substituíram os seus braços. Como havia sido transferido do almoxarifado (a nova chefe, num acesso de faxinice aguda, eliminara todo o estoque de medicamentos), Gregório logo se adaptou às patas.
Acostumado com a naturalidade brasileira das adaptações, Gregório foi seguindo a vida aos trancos e barrancos. Às vezes, chegava até a agradecer a metamorfose. Sem precisar gastar dinheiro com nenhuma cirurgia, seu estômago encolhera e a falta de alimento na geladeira já não o assustava mais. O gorro estúpido já não lhe causava constrangimento, pois da noite para o dia virara moda.
Porém, como adaptação de classe média dura pouco, nesta semana, ao ver na TV as gastanças do senado com diretores de garagem, diretores de atas, diretores de cafezinho e diretores de adoçante e de venezianas, Gregório se viu totalmente transformado em barata. Olhou para os lados e viu a mulher, os filhos e a empregada arrastando-se pelos cômodos da casa, exatamente como ele. Arrastou-se até a janela e viu a rua apinhada de insetos. E quando já começava a tecer motivos para mais uma adaptação, viu na TV uma cena dantesca: os parlamentares haviam se transformado em gigantescas latas de inseticida.



Marcia Frazão

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