segunda-feira, 8 de julho de 2013

O atropelo



Sigo por uma rua que percorro muito raramente. Muito raramente mesmo. O bairro é semi-burguês, com população envelhecida, muitas lojas agora fechadas, umas de vez, outras de férias, e a fama nocturna não será das melhores.
O calor aperta e cada sombra é um alívio, pelo que caminho junto às paredes, com calma e observando onde estou e quem está, com uma pressa equivalente a quem está em turismo na sua cidade-natal.
A dado passo quase sou atropelado. Não por um carro, como se suporia, mas por um homem. Com uns cinquentas bem medidos, saiu de supetão de uma porta, parecida com esta, mas que não esta. A sua saída foi tão rápida que quase chocámos. O que teria talvez por consequência, talvez, o ele deixar cair no chão o que trazia nas mãos.
Um tachinho de alumínio, daqueles bem grossos, com uns vinte de diâmetro e uns cinco de alto, já com marcas da idade, tanto de amolgadelas como de preto. Vinha dentro de um saco, transparente, e ele fazia questão que a tampa não saísse do sítio, ainda não parecesse preocupar-se com a possibilidade de entornar o seu conteúdo. Não teria algum, certamente.
Conforme se afastou, reparei que trazia um avental sem peitilho, caindo-lhe abaixo dos joelhos. E no seu afastar, após os pedidos de desculpa habituais, cruzou a rua e entrou num restaurante fronteiro.
Nada se passou que não um daqueles incidentes banais, daqueles que nem sequer recordamos passados dez minutos. Excepto…
Excepto que fiquei a cogitar, considerando que pouco passava das quatro da tarde, se traria ele o tacho de um almoço já comido, se o tacho de um jantar ainda por comer, se o tacho de um almoço e jantar de todo um dia. Porque tudo indicava que tinha ido entregar de comer a alguém residente nesse prédio.
E fiquei a pensar que o ou os destinatários daquela refeição ainda tinham alguma sorte em a sua pensão de reforma permitir encomendar, quiçá diariamente, o almoço ou o jantar ao restaurante fronteiro. Tal como têm sorte em serem visitados diariamente por alguém, mesmo que de avental comprido, para quebrar a rotina de um dia fechado em casa. E de outro dia. E de outro dia. E de outro dia. E de outro dia. Até ao dia final.
As portas aqui desta rua, deste bairro, são curiosas, tão curiosas quanto quaisquer outras de qualquer outro bairro. Pelo uso que têm, pelo cuidado na sua manutenção e nível de segurança (note-se o trinco manual), pelos autocolantes nos vidros e madeiras.

Mas todas as portas desta rua, deste bairro, deste mundo, escondem particularidades que as tornam únicas, nas felicidades e tragédias que a vida impõe.

By me 

Sem comentários: