sábado, 28 de maio de 2011

Deus, cor e pátria


Uns dias antes tinha estado mesmo na fossa, mais por baixo que barriga de jacaré. Por isso, quando me abordaram no comboio, não só não os afastei como é meu hábito como ainda caí na patetice de lhes dar a minha morada. Assim, quando naquela tarde os dois “Elder’s” me bateram à porta, tive que a franquear e conversar com eles. Afinal o convite tinha sido meu…
Tenho que admitir que possuo alguma admiração por aqueles que, tendo uma fé, dão o seu tempo e o seu esforço por ela, na tentativa de “salvar almas”, seja lá isso o que for.
E como sou curioso do género humano, tentei tirar partido da situação, aprendendo com eles o possível, apesar da dificuldade do fazer a ponte entre um crente e um agnóstico.
As suas técnicas de catequização eram bastante primárias, para não ir mais longe. Faziam acompanhar os seus discursos bem ensaiados com ilustrações em tons aguarela, bem semelhantes àqueles que eu não conheci de perto nas aulas de moral e religião da escola. Não só a coloração, como o próprio traço eram de uma ingenuidade própria para cativar crianças… de outras épocas. Mas quem sou eu para criticar os métodos (desde que legítimos) de missionários?
Desta conversa retive, e retenho, três aspectos principais:
Em primeiro lugar, a maioria das minhas perguntas, materialistas e racionais, não podiam ser ali respondidas. A todas ou quase era-me dito que as respostas só as poderia obter em sessões posteriores, quando os rudimentos estivessem aprendidos;
Em segundo lugar, deveríamos, eles e eu, ajoelharmo-nos para rezar, mostrando assim a nossa humilhação perante o criador. Como não sou crente, fiz algumas fintas e escapei-me desta. Entre outras coisas, porque seria uma hipocrisia da minha parte;
Mas não me escapei de ouvir – e nunca mais esquecer – um dos seus dogmas sobre a criação do mundo e do Homem.
De acordo com eles, o criador terá povoado o planeta em dois locais simultaneamente: o Médio Oriente e o continente Norte Americano. Neste, o género humano vivia no paraíso, porque de acordo com as leis divinas. Mas, a partir de dada altura, alguns desviaram-se delas, passando a viver na luxúria, no deboche, na violência.
E então, de castigo, o criador escureceu-lhes a pele!
Quando ouvi isto, ainda ponderei a situação, mas achei que o preço a pagar pelas vidraças quebradas era demasiadamente alto comparado com a satisfação que sentiria vê-los sair pela janela do meu 7º andar.
Engoli em seco e tentei acabar a conversa rapidamente, procurando mostrar alguma urbanidade para com as visitas.
À saída, ainda tentaram dar-me uns papéis com excertos do seu livro sagrado, para que o pudesse conhecer melhor. Perante a minha recusa em aceitar, argumentando que não seria por excertos que poderia conhecer a fundo uma religião, entreolharam-se e acabaram por me ofereceram o exemplar que possuíam.
Ainda lhe dei uma olhada, mas nunca fui mais longe que isso.
Queima-me os dedos e a retina ler um livro que tão primariamente defende o racismo e a segregação racial.
Não! Não na minha casa nem na minha convivência! E, se pudesse, não na convivência dos demais seres humanos!
Porque estes que ali estiveram, são infra humanos!

Tem esta estória, talvez, quinze anos, e publiquei-a faz hoje exactamente cinco anos
Mas, ao relê-la e recordar os detalhes do que então vivi e aqui não contei, não posso deixar de fazer um paralelismo com o que vai acontecendo por cá, hoje em dia.
É que sairiam pela janela, desta feita um terceiro andar, aqueles que me tentassem convencer para efeitos eleitorais que os migrantes que por cá vivem são úteis para trabalhar nas obras e na limpeza de casas e ruas, mas que a sua maioria estaria bem era atrás das grades ou recambiados lá p’ra terra deles. Sejam eles loirinhos de leste, amarelinhos do sol-nascente, escurinhos d’áfrica ou meias-tintas dos brasis. Porque alguns há por aí que vão defendendo, mais ou menos francamente, que os nossos males actuais advêm dessa “cambada” que estão aqui a subverter a lusitaniedade.
Tal como usariam o mesmo caminho de saída aqueles outros que, a pretexto de tentarem obter votos, me viessem dizer que merecem melhores cuidados de saúde, de educação, de justiça, melhores tectos, alimentação e vestuário aqueles que nasceram em condomínios fechados que os que nasceram em habitações sociais.

É por causa dessas e de outras que passei a ser muito selecto naqueles que franqueiam a minha porta. E que, como reforço de precaução, passei a ter sempre uma janela aberta: é que não quero ter despesas com o vidraceiro!


Texto e imagem: by me

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