terça-feira, 31 de agosto de 2010

Um olhar sobre o olhar


Foi coisa que sempre tive pudor em fazer: fotografar um cego.
Como diabo se pede a alguém para fazer algo que não poderá saber o que é?
Já me é particularmente difícil fotografar alguém sem o seu conhecimento e consentimento. Para além das eventuais questões legais, que as há, sempre se me pôs a questão de, ao fazê-lo, estar abusivamente a entrar na intimidade do fotografado. Mesmo que na rua, mesmo que no meio de uma multidão, existe uma privacidade, um recato que há que respeitar.
Agora fotografar um cego? Não apenas se me afigura muito mais difícil, como nem sequer sei como lhe pedir para tal!

Esta questão, que sempre me incomodou um niquinho, tomou proporções bem maiores nas últimas trinta horas.
Nestes dois dias usei, para o regresso a casa, uma estação de caminho de ferro que nunca uso em início de tarde. E, curiosamente, em ambos os dias, dou comigo a auxiliar cegos, meio perdidos naquela confusão de uma grande estação, com inúmeras escadas e acessos. Auxiliei-os nas suas necessidades imediatas, bem como nas seguintes, acabando por os conduzir a pontos ou lugares bem para além ou ao lado dos meus próprios trajectos.
O que me permitiu manter alguma conversa com eles (dois homens ontem, uma senhora hoje) e que, em circunstâncias normais, poderia acabar com um retrato ou um “olhar”.
Mas, apesar desse contacto de quase uma hora cada, sempre estive com pudor em lhes propor semelhante coisa. Como diabo se lhes pode pedir para fazer uma coisa que eles mesmos não sabem o que é, nem virão a saber?

Se eu fosse pessoa para acreditar num destino pré-concebido, até poderia pensar que estas duas situações incomuns e fortuitas para mim, em dois dias consecutivos, seriam alguma premonição para o fazer. Mas não sei se, amanhã tropeçar noutro cego, terei a coragem ou o atrevimento para lho pedir.

E não! Na imagem não está um cego, ainda que use óculos para ver melhor. Apenas o olhar de um amigo que gostaria de ter agora por perto para lhe perguntar que faria ele nestas circunstâncias.


Texto e imagem: by me

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