quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Dez minutos de estrelas


5 - O Papalagui nunca tem tempo

O Papalagui adora o metal redondo e o papel forte, gosta de encher a barriga com uma série de líquidos provenientes de frutos mortos, e com carne de porco, boi e outros horríveis animais, mas acima de tudo gosta de uma coisa que se não pode agarrar e que no entanto existe: o tempo. Leva-o muito a sério e conta toda a espécie de tolices acerca dele. Embora não possa haver mais tempo do que o que medeia do nascer ao pôr-do-sol, isso para o Papalagui nunca é o bastante.

O Papalagui nunca está contente com o tempo que lhe coube e censura ao Grande Espírito o não lhe ter dado mais. Chega mesmo a blasfemar contra Deus e a sua grande sabedoria, dividindo e subdividindo cada novo dia que nasce, segundo um plano bastante preciso. Corta-o como se cortaria em pedaços uma noz de coco mole com um cutelo. As várias partes têm todas elas um nome: segundo, minuto, hora. O segundo é mais pequeno que o minuto e este mais pequeno do que a hora. As horas são feitas de todos os segundos e minutos juntos, e é preciso ter sessenta minutos e muitos mais segundos para fazer uma hora.
É uma coisa muito confusa que eu na realidade nunca percebi, pois me indispõe reflectir mais do que o devido sobre coisas tão pueris. O Papalagui, contudo, faz disso toda uma ciência. Os homens, as mulheres e até mesmo as crianças que ainda mal se têm nas pernas trazem consigo, quer presa por grossas cadelas de metal que lhe pendem do pescoço, quer atada ao punho com a ajuda de uma correia de coiro, uma pequena máquina achatada e redonda onde podem ler o tempo, o que não é mesmo nada fácil. Ensinam isso às crianças encostando-lhes a máquina ao ouvido, para lhes despertar a curiosidade

Pode-se facilmente pegar em tal máquina só com dois dedos; lá dentro tem umas máquinas parecidas com as que há no bojo dos grandes barcos que todos vós conheceis. Mas nas cabanas há outras máquinas do tempo, grandes e pesadas, e outras ainda suspensas no cimo das mais altas cabanas, para que se veja bem de longe. Quando decorreu um certo tempo, isso é-nos indicado por dois dedinhos postados na parte de fora da máquina; ao mesmo tempo que ela solta um grito e um espírito bate num ferro que há lá dentro fazendo-o ressoar. Sim, há um barulho enorme, um formidável estrondo nas cidades europeias, ao fim de certo e determinado tempo.

Ao ouvir o barulho da máquina do tempo, queixa-se o Papalagui assim: «Que pesado fardo! mais uma hora que se passou!» E, ao dizê-lo mostra geralmente um ar triste, como alguém condenado a uma grande tragédia. No entanto, logo a seguir principia uma nova hora!
Como nunca fui capaz de entender isto, julgo que se trata de uma doença grave. «O tempo escapa-se-me por entre os dedos!», «O tempo corre mais veloz do que um cavalo!», «Dá-me um pouco mais de tempo», - tais são os queixumes do homem branco.

Dizia eu que se deve tratar de uma espécie de doença... Suponhamos, com efeito, que um Branco tem vontade de fazer qualquer coisa e que o seu coração arde em desejo por isso: que, por exemplo, lhe apetece ir deitar-se ao sol, ou andar de canoa no rio, ou ir ver a sua bem-amada. Que faz ele então? Na maior parte das vezes estraga o prazer com esta ideia fixa: «não tenho tempo de ser feliz». Mesmo dispondo de todo o tempo que queira, nem com a melhor boa vontade o reconhece. Acusa mil e uma coisas de lhe tomarem o tempo e, de mau grado e resmungando, debruça-se sobre o trabalho que não tem vontade nenhuma de fazer, que não lhe dá qualquer prazer e que ninguém, a não ser ele próprio, o obriga a fazer. Quando de repente se dá conta de que tem tempo, que tem realmente todo o tempo à sua frente, ou quando alguém lhe dá tempo - os Papalaguis dão frequentemente tempo uns aos outros, é mesmo a acção que mais apreciam -, nessa altura, ou já não tem vontade, ou já se cansou desse trabalho sem alegria. E geralmente deixa para o dia seguinte o que podia fazer no próprio dia.

Pretendem alguns Papalaguis que nunca têm tempo. Correm desvairados de um lado para o outro como se estivessem possuídos pelo aitu (morcego – n.t.) e causam terror e desgraça onde quer que cheguem, só porque perderam o seu tempo. Esse estado de frenesim e demência é uma coisa terrível, uma doença que nenhum homem de medicina pode curar, doença que atinge muitos homens e que os leva à desgraça.

Como vivem obcecados pelo medo de perderem o seu tempo, todos os Papalaguis - sejam homens, mulheres ou crianças de tenra idade -. sabem com exactidão quantas vezes nasceu o sol e a lua desde que viram pela primeira vez a luz do dia. Esse acontecimento é considerado tão importante que o celebram. a intervalos de tempo fixos e regulares com flores e grandes festas. Reparei muitas vezes, que eles, no meu lugar, se sentiam envergonhados quando a perguntarem-me a idade que tinha. eu não era capaz de responder a tal pergunta, que só me dava vontade de rir! «Mas não podes deixar de saber a tua idade!» Eu calava-me, pensando para comigo: mais vale não saber.

Ter uma idade, quer dizer: ter vivido um determinado número de luas. Isto de se perguntar qual o número de luas apresenta grandes perigos, pois foi assim que se acabou por determinar quantas luas dura em geral a vida dos homens. Ora acontece que cada um, sempre muito atento a isso, passadas que foram já inúmeras luas, dirá: «Pronto! não tarda muito que eu não morra!» Nada mais então lhe causa alegria e, de facto, acaba por morrer daí a pouco tempo.

Raros são os que, na Europa, dispõem realmente de tempo: Ou talvez nem sequer existam. E por isso que eles passam a vida a correr à velocidade de uma pedra lançada ao ar. A maior parte olha para o chão, quando caminha, e balança muito os braços para ir mais depressa. Quando os detêm, gritam indignados: «Que ideia a tua, de me vires perturbar! Não tenho tempo! e tu, trata de empregar bem o teu!» Tudo se passa como se o que anda depressa tivesse mais valor e bravura do que vai devagar.

Vi um homem cuja cabeça parecia prestes a estoirar, e cujo rosto passava sucessivamente do vermelho ao verde, um homem que rolava os olhos em todos os sentidos, que abria a boca como um peixe que vai morrer e batia com os pés e com as mãos, tudo porque o seu criado chegara um pouco mais tarde do que tinha prometido. Esse atraso mínimo representava para o amo uma perda enorme e irreparável. O criado teve que se ir embora da cabana, pois o Papalagui expulsou-o, dizendo: «Já me roubaste muito tempo! Quando um indivíduo não tem a mínima consideração pelo tempo, só estamos a perder o nosso com ele!»

Encontrei, uma única vez, um homem que não se queixava de estar a perder tempo e que o tinha de sobra; mas esse era pobre, sujo e desprezado. As pessoas desviavam-se, para o evitar, e ninguém o respeitava. Não entendi tal comportamento, pois ele andava devagar e tinha um olhar sorridente, calmo e bondoso. Quando lhe perguntei qual a razão disso, o seu rosto crispou-se e respondeu-me com voz triste: «Nunca soube empregar o meu tempo de maneira útil; é por isso que não passo de um pobre-diabo desprezado por toda a gente!» Aquele homem tinha tempo, mas nem mesmo ele era feliz.

O Papalagui emprega todas as suas forças, bem como a sua capacidade de raciocínio, em tentar ganhar tempo. Utiliza a água, o fogo, a tempestade e os relâmpagos para parar o tempo. Põe rodas de ferro nos pés e dá asas às palavras, só para ganhar tempo. E porquê tanta canseira? Como é que o Papalagui emprega o seu tempo? Nunca percebi muito bem, embora, pelos seus gestos e palavras, sempre me tivesse dado a impressão de alguém que o Grande Espírito tivesse convidado para um fono.

A meu ver, é precisamente por o Papalagui tentar reter o tempo com as mãos, que ele se lhe escapa por entre os dedos, como uma serpente por mão molhada. O Papalagui nunca deixa que ele venha ao seu encontro. Corre sempre atrás dele de braços estendidos, não lhe concede o repouso necessário, não o deixa apanhar um pouco de sol. Tem que ter sempre o tempo ao pé de si, para lhe cantar ou contar qualquer coisa. Mas o tempo é calma, é paz e sossego, gosta de nos ver descansar, estendidos na nossa esteira. O Papalagui não se apercebeu ainda do que o tempo é, não o compreendeu. E por isso que o maltrata, com os seus modos rudes.

Oh! meus queridos irmãos! Nós nunca nos queixámos do tempo, amámo-lo e acolhemo-lo tal como ele era, nunca corremos atrás dele, nunca tentámos amalgamá-lo ou cortá-lo em pedaços. Nunca ele nos deixou desesperados ou acabrunhados. Se algum de nós há aí a quem falte tempo, que diga! Todos nós o possuímos em quantidade, não temos razões de queixa. Não precisamos de mais tempo do que o que temos, temos sempre tempo suficiente. Sabemos que atingiremos o nosso alvo a tempo, e que muito embora ignoremos quantas luas se passaram, o Grande Espírito nos chamará quando lhe aprouver. Devemos curar o Papalagui da sua loucura e desvario, para que ele volte a ter a noção do verdadeiro tempo que tem perdido. Devemos destruir as suas pequenas máquinas do tempo e levá-lo a confessar que há muito mais tempo do nascer ao pôr-do-sol do que ao homem lhe é dado gastar.


In “O Papalagui” - Discursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa, nos mares do sul, depois de uma visita à Europa – Antigona
Imagem: by me

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