sábado, 21 de agosto de 2010

Salto alto


Há uns dias alguém, no mundo virtual da web, disse que eu gostava de fotografar lixo.
Cumpre-me dizer que tal não é verdade.
Se o fosse, teria muito para fotografar em aterros sanitários, centrais de recolha de resíduos sólidos urbanos e afins. Teria já tido, certamente, profícuas conversas com os técnicos camarários, bem como aqueles que recolhem o lixo com os camiões, para saber quais as zonas mais “rentáveis”, tanto em termos de quantidade como de qualidade. Também já teria acompanhado os catadores de lixo, na sua triste azáfama diária, tentando perceber quais os seus critérios e quais os prédios ou ruas, das suas rondas, que mais proveitos lhes trazem. Provavelmente também teria já andado de caixote em caixote, abrindo as tampas e revolvendo os seus conteúdos, preparado para captar o “brinde” do dia.
Nada disto fiz e, acrescento, não tenho intenções de o fazer.
Aquilo que vai acontecendo é o eu ir tendo atenção ao que me cerca, umas vezes olhando para baixo, outras para cima, muitas vezes surpreendido com a originalidade do que se pode encontrar ao abandono nas ruas. Não forçosamente na categoria de lixo ou jogado fora, mas tão só abandonado.
Este meu interesse surgiu, se bem me recordo, de ter “tropeçado” num montão de roupa transbordando de uns sacos, encostados a um automóvel, bem afastado de qualquer contentor de lixo.
Consegui logo ali, entre o ver, o captar e o olhar de novo, conceber três ou quatros motivos para que tão insólito monte ali estivesse: uma mudança de domicilio e um esquecimento; um desavença conjugal; o roubo de um apartamento…
De então para cá ficou-me o hábito e o divertimento. Em particular com calçado.
É daquelas coisas que não se jogam fora por dá cá aquela palha. Mesmo que já fora de moda, sempre se vão guardando, desde que usáveis, para uma outra estação ou moda. E mesmo os de criança, em ela crescendo, acabam por ser usadas por uma outra, da família ou não, com pé mais pequeno.
É que, e para além do preço do calçado, mesmo considerando as feiras de rua, sempre se fica com alguma afectividade para com aquilo que nos protege os pés. E se um sapato novo, por muito pouco que a tal se dê importância, é sempre um momento “diferente”, usar um sapato velho, já feito ao pé, é uma sensação de conforto à qual não damos por demais atenção, excepto quando algo corre mal.
A cada sapato, ou par de sapatos, que vejo abandonados na rua, atribuo uma qualquer estória, desde viagens a trabalho, de festas a desporto, de romances a raiva.
Conseguis imaginar este par a ir, ainda por estrear, a uma festa, numa discoteca ou casa de alguém? E uma segunda ou terceira até ter entrado na categoria de “já não são novos” e passarem a transportar e suportar a sua dona no quotidiano de ir, estar e regressar do trabalho? Conseguis imaginar quem os usou a olhar pela janela, de manhã, e tentar adivinhar se irá ou não chover e se os pode ou não usar? Conseguis imaginar uma qualquer amiga mais íntima, ou bem pelo contrário, a constatar que os sapatos são novos e como lhe ficam bem (ainda que possa haver ironia na observação)? Conseguis imaginar estes sapatos, lado a lado, e de frente para uns outros masculinos, por sob uma mesa de um restaurante?
Acontece que raramente conto o que passa pela cabeça quando os vejo e fotografo. Acho que tem muito mais interesse deixar esse aspecto para quem quer que veja a imagem, usando a sua própria imaginação e experiências de vida para construir uma estória. É que, afinal, quem calça o sapato é que sabe onde lhe aperta!

Texto e imagem: by me

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