quarta-feira, 12 de junho de 2013

Em trânsito



Ouvi-os estavam eles na outra ponta da carruagem.
A princípio pareceu ser mais um daqueles aparelhos demoníacos, que debitam “música” para o seu dono e todos os demais cem metros em redor. Torturas modernas sob a forma de electrónica de consumo.
Mas, ao fim de um pedaço, levantei os olhos do livro e procurei a fonte. Afinal, não deveria ser de um aparelhómetro, até porque incomum. E não era.
Eram dois: um com uma pandeireta, o outro com uma viola. E se este acrescentava o som do seu pé ressoando no chão falso da carruagem, já o primeiro usava da voz para completar o conserto.
Fiquei baralhado com o que ouvia. Não lhes conseguia identificar a origem. P’la tez, feições e o arrastar das palavras, como que a alonga-las a seu bel-prazer, bem que poderiam ser egípcios. E se a pandeireta concordava, já viola dizia que não, secundada p’lo pé no chão. E, no meio de tudo, a nota dissonante, que não se ouvia mas via: os chapéus. Cada um com o seu, de aba bem estreita e com uma pena, ou simulacro, de lado. No meio dos requebros do que pandeiretava, o trocar de chapéus e o ficar, à vez, um com dois, parecia fazer parte de uma qualquer coreografia conhecida que se me escapava.
Saímos todos na mesma estação, que o comboio seguiria dali vazio para recolha. E eles continuavam com uma alegria contagiante. Mas, ao mesmo tempo, a criar como que um vazio em redor, que todos se afastavam. O álcool que haviam ingerido, e que um deles confessou num português abaixo do rudimentar, tornava-os pouco menos que leprosos.
Com excepção de uma velha “mãe d’áfrica”, que se ia rindo do que faziam, mas com olho e palavras de cautela para com os dançarinos sobre a beira do cais. E com excepção de mim, que tenho o nariz maior que a barriga e uma curiosidade ainda maior. De onde raio viriam eles, alegres e bem-dispostos com é raro ver-se que não nos lugares próprios e permitidos p’los bons usos e costumes de uma sociedade castrante e castrada?
Foi um cigarro que acendi que quebrou o gelo. Enquanto a viola continuava a ser dedilhada, com acordes desconhecidos, o outro abeirou-se e pediu-me um. Como se tivera mola, saltou-me da cigarreira. E, com ele, a inevitável pergunta: de onde são? Da Bulgária, respondeu-me, apertando-me a mão que muitos recusariam por via da patine que cobria a sua.
Tentei dizer-lhe que estava a gostar da música, tentativa difícil devido à barreira linguística e ao etílico que dele emanava. Mas, de algum modo lá nos entendemos. E ele, sorridente, arrancou nuns ritmos na pele esticada, acompanhados p’los seus pratinhos metálicos e da voz ininteligível e alongada.
O companheiro apercebeu-se da troca e aproximou-se. Se o gesto é tudo, facilmente percebi que também queria um cigarro. Que obteve, naturalmente, em troca de mais um efusivo cumprimento de mão.
Quando o comboio seguinte chegou, o meu, embarquei. Bem como a boa da velhota, que tinha tanto de anafada como eles de secos de carnes. Da porta, levei a mão à pala do boné, recebendo de volta um levantar do chapéu e baixar da cabeça quase que por eles ensaiado. E voltaram a sorrir e a tocar e dançar, como se os parcos (parquíssimos) recursos que se lhes adivinhavam em nada contribuíssem para as suas felicidades ou alegrias.
Tivera eu comigo a minha flauta e teria mandado às urtigas os horários da CP e os de trabalho de amanhã, e os aromas e as patines, juntando-me a eles numa festa a troco de nada, apenas porque apetece e torna a apetecer.
Que se a vida não é para ser celebrada, nem Baco teria surgido nem Pã teria tocado.


(Nota extra: ainda bem que não tinha a flauta, faz muito arrumada numa parede, servindo-me de exemplo constante daquilo que não sei fazer mas que gostaria.)

By me

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