Ouvi-os
estavam eles na outra ponta da carruagem.
A
princípio pareceu ser mais um daqueles aparelhos demoníacos, que debitam “música”
para o seu dono e todos os demais cem metros em redor. Torturas modernas sob a
forma de electrónica de consumo.
Mas,
ao fim de um pedaço, levantei os olhos do livro e procurei a fonte. Afinal, não
deveria ser de um aparelhómetro, até porque incomum. E não era.
Eram
dois: um com uma pandeireta, o outro com uma viola. E se este acrescentava o
som do seu pé ressoando no chão falso da carruagem, já o primeiro usava da voz
para completar o conserto.
Fiquei
baralhado com o que ouvia. Não lhes conseguia identificar a origem. P’la tez,
feições e o arrastar das palavras, como que a alonga-las a seu bel-prazer, bem
que poderiam ser egípcios. E se a pandeireta concordava, já viola dizia que não,
secundada p’lo pé no chão. E, no meio de tudo, a nota dissonante, que não se
ouvia mas via: os chapéus. Cada um com o seu, de aba bem estreita e com uma
pena, ou simulacro, de lado. No meio dos requebros do que pandeiretava, o
trocar de chapéus e o ficar, à vez, um com dois, parecia fazer parte de uma
qualquer coreografia conhecida que se me escapava.
Saímos
todos na mesma estação, que o comboio seguiria dali vazio para recolha. E eles
continuavam com uma alegria contagiante. Mas, ao mesmo tempo, a criar como que
um vazio em redor, que todos se afastavam. O álcool que haviam ingerido, e que
um deles confessou num português abaixo do rudimentar, tornava-os pouco menos
que leprosos.
Com
excepção de uma velha “mãe d’áfrica”, que se ia rindo do que faziam, mas com
olho e palavras de cautela para com os dançarinos sobre a beira do cais. E com
excepção de mim, que tenho o nariz maior que a barriga e uma curiosidade ainda
maior. De onde raio viriam eles, alegres e bem-dispostos com é raro ver-se que
não nos lugares próprios e permitidos p’los bons usos e costumes de uma
sociedade castrante e castrada?
Foi
um cigarro que acendi que quebrou o gelo. Enquanto a viola continuava a ser
dedilhada, com acordes desconhecidos, o outro abeirou-se e pediu-me um. Como se
tivera mola, saltou-me da cigarreira. E, com ele, a inevitável pergunta: de
onde são? Da Bulgária, respondeu-me, apertando-me a mão que muitos recusariam
por via da patine que cobria a sua.
Tentei
dizer-lhe que estava a gostar da música, tentativa difícil devido à barreira
linguística e ao etílico que dele emanava. Mas, de algum modo lá nos entendemos.
E ele, sorridente, arrancou nuns ritmos na pele esticada, acompanhados p’los
seus pratinhos metálicos e da voz ininteligível e alongada.
O
companheiro apercebeu-se da troca e aproximou-se. Se o gesto é tudo, facilmente
percebi que também queria um cigarro. Que obteve, naturalmente, em troca de
mais um efusivo cumprimento de mão.
Quando
o comboio seguinte chegou, o meu, embarquei. Bem como a boa da velhota, que
tinha tanto de anafada como eles de secos de carnes. Da porta, levei a mão à
pala do boné, recebendo de volta um levantar do chapéu e baixar da cabeça quase
que por eles ensaiado. E voltaram a sorrir e a tocar e dançar, como se os
parcos (parquíssimos) recursos que se lhes adivinhavam em nada contribuíssem para
as suas felicidades ou alegrias.
Tivera
eu comigo a minha flauta e teria mandado às urtigas os horários da CP e os de
trabalho de amanhã, e os aromas e as patines, juntando-me a eles numa festa a
troco de nada, apenas porque apetece e torna a apetecer.
Que
se a vida não é para ser celebrada, nem Baco teria surgido nem Pã teria tocado.
(Nota
extra: ainda bem que não tinha a flauta, faz muito arrumada numa parede,
servindo-me de exemplo constante daquilo que não sei fazer mas que gostaria.)
By me
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