Porque
a época é de tradições, aqui fica uma das minhas: este texto de um excelente
autor, maldito para uns, magnífico para outros.
E
se excluirmos algum exagero aqui ou ali, certamente que reconhecermos o
descrito.
Como
a família da Lurdinhas passou a consoada do ano passado:
Para
estreitar os laços familiares, não há nada que chegue à festa do Natal, lá isso
é verdade, mas espero que neste ano as coisas corram melhor do que o ano
passado e não seja preciso o meu pai ir mudar de roupa a meio do jantar por ter
apanhado em cheio com o galheteiro do azeite nos cornos, atirado pela minha mãe
que o topou a apalpar o cu à D. Filomena, uma prima da minha madrinha que veio
de Angola e vive numa pensão em Almirante Reis e anda a estudar para manicure.
A
minha mãe ficou bera e com razão, não é por ser minha mãe, esteve quase a
dar-lhe o fanico e só gritava: «Tirem-me essa puta da frente! Tirem-me essa
puta da frente!» Mas quando as pessoas são educadas, as coisas acabam por compor-se
e bastou tirarem a D. Filomena de ao pé do meu pai para ficar tudo em sossego.
No fim até estiveram as duas a falar de crochés e da telenovela, que nessa
altura dava na televisão, e a D. Filomena ofereceu-se para tratar os pés da
minha mãe, assim que acabasse um curso de calista que andava a tirar ali para
os lados da Fonte Luminosa.
Essa
bronca portanto foi o menos; o pior veio a seguir quando a minha avó teve a
infeliz ideia de perguntar à prima Otília que presente de Natal é que lhe
tinham dado os patrões do escritório onde ela trabalha e a parva descaiu-se a
dizer que, do senhor Benjamim, recebeu um jogo de calcinhas e soutien em nylon,
e do senhor Canelas, um vibrador-masturbador japonês, muito bonito, todo
transistorizado.
Ora,
ao ouvir isto, o Fernando, que é o marido da Otília e tinha metido na boca uma
grande garfada, engasgou-se, engoliu uma data de espinhas de bacalhau, cuspiu o
resto no prato do meu avô e desatou ao bofetão à mulher: «Sua cabra! Sua
ordinária!» e a dizer que ia enfiar o vibrador pelo cu do Canelas acima e
partir os cornos ao porcalhão do Benjamim.
E
a palerma da Otília, em vez de se calar, como era a obrigação dela, cresceu
para o marido que até parecia uma leoa: «Tire as patas de cima de mim, seu
cabrão! Você é que tem cornos e dos grandes, ouviu?» E ele, todo a tremer:
«Eu?! E ainda o dizes, grandessíssima puta?» E a Otília: «Pois digo para
vergonha tua, que nem és marido nem nada! Se não fossem os meus patrões não sei
o que seria de mim?». E desatou a chorar baba e ranho e então o Fernando
agarrou na faca de cortar o bolo-rei e toda a família se pôs a gritar «Ai que
ele mata-a! Ai que ele mata-a!», mas o meu pai tirou-lhe a faca e o tio Arnaldo
obrigou-o a sentar-se na cadeira, deu-lhe palmadinhas nas costas e disse-lhe:
«Não ligues ao que ela diz, pá, que as mulheres são todas umas putas», e ele ao
ouvir estas boas palavras, ficou mais sossegado e até alargou um furo ao cinto
para continuar a comer.
O
pior é que a tia Palmira não gostou da conversa do marido e começou a refilar
que não queria confusões, que se as outras eram putas ela era uma mulher séria,
que quem não se sente não é filho de boa gente, etc., etc., mas o tio Arnaldo
que é um bocado bruto atirou-lhe logo esta a matar: «Escusas de armar em séria,
que todos sabem que andaste enrolada com o Gonçalves da farmácia quando ele te
tratou do eczema»; e ela, logo: «E tu com a Gracinda da peixaria, que até
escamas de pargo trazias para casa nas cuecas!» E o tio Arnaldo, muito fodido:
«As escamas de pargo não são aqui chamadas para nada, porra!» E, ao dizer isto,
deu tal murro num prato de filhoses que saltou calda para todo o lado e até eu
fiquei com o cabelo enchapoçado dela. E o meu pai que ia acudir pela tia
Palmira, esteve vai não vai para apanhar outra vez com o galheteiro, pois a
minha mãe tinha-o sempre debaixo de olho; enfim, só visto!
O
que valeu para que a festa de Natal não ficasse estragada foi a minha madrinha
impor-se, visto ser ela a dona da casa, e avisar que não consentia faltas de
respeito, que aquilo ali não era nenhuma taberna e que achava uma sacanice
estarem a encher o bandulho à custa dela, com a comida cara como estava, e a
portarem-se que nem javardos em vez de se mostrarem agradecidos. «Ou comem de
bico calado ou vai tudo para o olho da rua!» disse ela e ninguém refilou;
durante algum tempo só se ouviu mastigar, até que o senhor Aguinaldo, o sacana
do velhote que está amigado com a minha madrinha e que até aí só abria a boca
para meter para dentro, resmungou lá do canto que no olho da rua já nós
devíamos estar há muito e que se a família dele fosse ordinária como a nossa já
a tinha rifado. Um gajo bera, palavra de honra; não são coisas que se digam
assim na frente das pessoas e ainda gostava de ver que merda de família é a
dele; cheira-me que é para ali uma ciganada cheia de putas, chulos, sovaqueiras
e arrebentas.
Mas
a minha mãe, que tem muito jeito para compor as coisas quando não está com a
bolha, disse que o melhor era a minha madrinha abrir a televisão, que tem
programas muito bonitos no Natal, porque as conversas não fazem falta para nada
e a gente não estava ali para conversar mas para comer e que assim as crianças
sempre estavam mais distraídas. Foderam-me!
Foi
assim que tive de gramar duas horas de chachadas como essa porcaria das canções
do Natal, das entrevistas do Natal, das tradições do Natal, dos votos de Natal
e até dos anúncios do Natal, sem ter feito mal a ninguém. Não é que eu goste de
chavascal e sarrafada, mas, mal por mal, ainda preferia ver os parentes todos à
porrada e a descobrir o cu uns aos outros do que ver a merda da televisão.
Texto:
by José Vilhena
Imagem:
by me
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