domingo, 13 de julho de 2014

Aparências



“Tens que dar graxa nesses sapatos”, disse-me ela. “Estão a ficar com muito mau aspecto.”
Não me zanguei com ela. Afinal, ao fim de tantos anos a partilharmos tantas, mas tantas mesmo, horas de trabalho e com o que essa partilha implica, parvo seria eu se me zangasse.
Fiquei mesmo satisfeito por ela se sentir suficientemente à-vontade para mo dizer, sendo mais nada que o trabalho temos partilhado.
Mas, e ao mesmo tempo, fiquei triste. Muito triste.
Porque esta sua observação, honesta e sincera, demonstra duas coisas pelo menos.
Por um lado que me não conhece, afinal, assim tão bem quanto eu supunha.
Por outro, porque reflecte, com a sua honestidade e franqueza, aquilo que pensa. E o que ela pensa pensam com ela muitos milhares ou milhões de pessoas: que o aspecto exterior conta e muito na definição de uma pessoa.
Pouco conta o que faz, o que diz, o que pensa. Pouco conta quando ou como intervém, quando ou como fala, quando ou como se queda quieto.
Conta, nesta sociedade em que vivemos, mais o aspecto da embalagem que o produto que contém.
Talvez que a culpa seja, em parte, da fotografia. Da simples existência da fotografia e da superficialidade com que, as mais das vezes é feita ou observada.
Dá muito trabalho ir para além da superfície. Implica conhecer o fotografado, conhecer o contexto em que se encontra e a sua personalidade, se for uma pessoa. Talvez que, por isso mesmo, gosto tanto de conceber como luz principal uma que venha de lá para cá e não que venha das minhas costas: dessa forma o que for translúcido mostra o que por dentro e o que for opaco, ainda assim, mostra com evidências as arestas e contornos.
E dá muito trabalho ver uma fotografia para além da evidência explícita do que é mostrado. Entender ou sentir subtilezas (luz, composição, cor, acção…) implica parar para se pensar no que se vê.
E a fotografia, hoje, é para consumir a correr. Que por cada uma que conseguimos ver, há uns milhões que são feitas e exibidas. Há que passar rapidamente para a seguinte, para a seguinte, para a seguinte, ou alguma se nos pode escapar!

Não dou a mínima importância à roupa que uso, calçado incluído. Quero-o prático e confortável. Calçado muito principalmente. Mais novo ou mais velho, com mais ou menos brilho, mais surrado ou mais vincado… não lhe dou um pingo de importância.
O que realmente me importa é o que me fica aquém da roupa, a capacidade que terei ou não de fazer melhor agora que aquilo que fiz ainda há pouco. A capacidade de criar um pensamento ou uma imagem que façam alguma diferença não apenas na minha satisfação mas num mundo de indiferença e semelhanças instituídas. A capacidade de, com os meus gestos, melhorar um nico a minha vida e a dos que comigo partilham o planeta.

A roupa, a embalagem? Bah! Afinal, vim ao mundo despido.

By me 

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