“Tens que dar
graxa nesses sapatos”, disse-me ela. “Estão a ficar com muito mau aspecto.”
Não me zanguei com
ela. Afinal, ao fim de tantos anos a partilharmos tantas, mas tantas mesmo,
horas de trabalho e com o que essa partilha implica, parvo seria eu se me
zangasse.
Fiquei mesmo
satisfeito por ela se sentir suficientemente à-vontade para mo dizer, sendo
mais nada que o trabalho temos partilhado.
Mas, e ao mesmo
tempo, fiquei triste. Muito triste.
Porque esta sua
observação, honesta e sincera, demonstra duas coisas pelo menos.
Por um lado que me
não conhece, afinal, assim tão bem quanto eu supunha.
Por outro, porque
reflecte, com a sua honestidade e franqueza, aquilo que pensa. E o que ela
pensa pensam com ela muitos milhares ou milhões de pessoas: que o aspecto
exterior conta e muito na definição de uma pessoa.
Pouco conta o que
faz, o que diz, o que pensa. Pouco conta quando ou como intervém, quando ou
como fala, quando ou como se queda quieto.
Conta, nesta
sociedade em que vivemos, mais o aspecto da embalagem que o produto que contém.
Talvez que a culpa
seja, em parte, da fotografia. Da simples existência da fotografia e da
superficialidade com que, as mais das vezes é feita ou observada.
Dá muito trabalho
ir para além da superfície. Implica conhecer o fotografado, conhecer o contexto
em que se encontra e a sua personalidade, se for uma pessoa. Talvez que, por
isso mesmo, gosto tanto de conceber como luz principal uma que venha de lá para
cá e não que venha das minhas costas: dessa forma o que for translúcido mostra
o que por dentro e o que for opaco, ainda assim, mostra com evidências as arestas
e contornos.
E dá muito trabalho
ver uma fotografia para além da evidência explícita do que é mostrado. Entender
ou sentir subtilezas (luz, composição, cor, acção…) implica parar para se
pensar no que se vê.
E a fotografia,
hoje, é para consumir a correr. Que por cada uma que conseguimos ver, há uns
milhões que são feitas e exibidas. Há que passar rapidamente para a seguinte,
para a seguinte, para a seguinte, ou alguma se nos pode escapar!
Não dou a mínima
importância à roupa que uso, calçado incluído. Quero-o prático e confortável. Calçado
muito principalmente. Mais novo ou mais velho, com mais ou menos brilho, mais
surrado ou mais vincado… não lhe dou um pingo de importância.
O que realmente me
importa é o que me fica aquém da roupa, a capacidade que terei ou não de fazer
melhor agora que aquilo que fiz ainda há pouco. A capacidade de criar um
pensamento ou uma imagem que façam alguma diferença não apenas na minha
satisfação mas num mundo de indiferença e semelhanças instituídas. A capacidade
de, com os meus gestos, melhorar um nico a minha vida e a dos que comigo
partilham o planeta.
A roupa, a
embalagem? Bah! Afinal, vim ao mundo despido.
By me
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