sexta-feira, 16 de abril de 2010

Manifesto


Falta pouco menos de um mês para a visita papal a Portugal.
No entanto já está a criar problemas por cá.
Veio o nosso governo criar dois meios feriados, em Lisboa e no Porto, para o pessoal da função pública, para que possam assistir às celebrações religiosas que ali acontecerão. Ora batatas! Porque carga de água tem isso que acontecer?
Por um lado, será que serão apenas os funcionários públicos os crentes? Todos os restantes cidadãos serão ateus, agnósticos os seguidores de outras confissões?
Por outro lado, porquê dar-se esta relevância à visita papal e deixar de fora outras visitas religiosas, igualmente importantes, como foi a do Dalai Lama não faz muito tempo?
Mas o que mais me incomoda no meio de tudo isto é que Portugal, estatutariamente, é um país laico, com notória separação entre o estado e a igreja. Então, porque fazer-se de um acontecimento religioso, extemporâneo e pontual um evento capaz de fazer parar o país?
Que culpa tenho eu, agnóstico convicto, que esse senhor de Roma cá venha? Que culpa tenho eu que tantos queiram (ou possam querer) ir rezar junto a ele? Porque raio terei eu que ter a minha vida privada alterada apenas porque vem um homem a Portugal?
Aliás, faz-me confusão toda esta gente querer estar e rezar junto do Papa, quando se supõe que a religião cristã não aceita ícones ou falsos deuses e que, para falar com o seu deus, qualquer lugar é bom, já que se trata de algo de muito privado e íntimo.
Mais ainda: este homem, e pondo de parte todas as polémicas em seu redor, não recebeu nenhuma inspiração divina para ocupar o lugar. Foi eleito entre os seus iguais, exactamente da mesma forma que elegemos um presidente ou um deputado. Mais ainda: para se ser presidente ou candidato a isso, basta ter-se a nacionalidade portuguesa, mais de 35 anos de idade e gozar de todos os direitos de cidadão. Entretanto, para se ser eleito papa, há que pertencer à mais alta hierarquia da igreja e apenas os que têm postos iguais o podem escolher. Todos os crentes e demais religiosos de inferior categoria são afastados do processo.
Mas, não sendo eu crente, pouco me importa como uma organização, a que não pertenço e com a qual não me relaciono, se organiza.
Incomoda-me antes sim, e muito, que essa mesma organização influa na minha vida privada! Apenas porque um homem, um qualquer homem, decidiu vir até cá, terei a minha vida modificada, com restrições à circulação de cidadãos, com espaços públicos e funcionários públicos, pagos por mim através dos meus impostos (leia-se impostos e não doações) a que não terei acesso…

Em contrapartida, se vier a Portugal um criador, um artista, um pensador profundo, uma pessoa que, de facto, tenha contribuído por si mesmo para a humanidade, não pára o país, não são concedidas tolerâncias de ponto e mesmo os media não lhe concedem nem a décima parte do tempo e espaço do que já está a acontecer, apesar de faltar quase um mês para que o papa cá venha.
Só para dar um exemplo, quando Sebastião Salgado voltar a Portugal, quero ter dispensa de trabalho para poder contactá-lo pessoalmente, poder apertar-lhe a mão e agradecer-lhe, em meu nome e dos demais, por ter feito o que tem feito. Não apenas do ponto de vista criativo ou artístico mas também por, com isso, ter-nos posto a pensar no que somos e ter-nos levado a melhorar (ou tentar) o mundo em que vivemos.
É que, caramba, um agnóstico ou um ateu também pode ter os seus ídolos de carne e osso, sem nada de divino ou transcendental!


Texto e imagem: by me

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