quinta-feira, 8 de abril de 2010

Caminhos velhos


A expressão habitual é “Vezes sem conta”. Mas creio que será exagero usa-la. Será mais realista dizer “umas boas centenas de vezes”!
Daí eu dizer que passei por esta esquina umas boas centenas de vezes.
Fica ela nas imediações de dois liceus que frequentei enquanto estudante. Trata-se de uma passagem pedonal, quase ignorada pelos não moradores da zona, já que fica nas traseiras de um prédio, de uma igreja e de uma escola do primeiro ciclo. Mas permite cortar na diagonal um caminho que, feito de outra forma, terá mais do dobro do comprimento. E os jovens, na sua ânsia de viver rapidamente cada momento, muito depressa descobrem os caminhos mais curtos entre aquilo que lhes interessa.
Usava-o para ir a uma geladaria do bairro, que de inverso diversificava os seus produtos com deliciosas bolas de Berlim, com ou sem creme. Estou em crer que se tivesse sido visitada pela ASAE, teria sido encerrada sem cerimónias, prendendo quem lá trabalhasse e os seus antepassados até à 10ª geração. Mas que os gelados e os bolos eram uma delícia e uma guloseima, isso é inquestionável!
Também este beco pertencia ao trajecto entre o liceu e uma já extinta papelaria que tinha como atractivo uns bonecos (cow-boys e cavaleiros medievais) que nos enchiam os olhos e a alma e nos esvaziariam os bolsos se tivéssemos dinheiro para tal. Ainda tive uns 3 ou 4 desta colecção, ofertas especiais pelos anos ou natal. Mas passávamos por lá amiúde, em busca de novidades, de renovações de montra e de matéria de conversa e de sonhos.
Claro está que este caminho meio escondido foi percorrido rapidamente, nem sempre quando devia, para me encontrar com a namorada do momento. Ou lentamente se a ela vinha abraçado, falando ou tão só pensando naquilo que os namorados costumam falar ou pensar.
Também serviu de fuga rápida às patrulhas policiais nos conturbados tempos que se seguiram à revolução. A sua reduzida largura e os lances de escadas eram um real obstáculo aos carros que nos tentavam apanhar, o que nos permitia deixa-los para trás, dispersando nas esquinas e encontrando-nos mais tarde noutra combinadas.
Assim posso afirmar, sem margem para erro, que em tempos, antigos passei por esta esquina umas largas centenas de vezes!
O que acaba por ter graça é que, com o passar dos tempos, este caminho acabou por ficar fora dos meus trajectos habituais. E passei anos sem a dobrar.
Mas, por um ou outro motivo, nos últimos seis meses tive que por aqui caminhar uma mão cheia de vezes. E, a cada uma delas, constatei que “O que o corpo sabe, a cabeça não pensa”.
É que, nos meus tempos de adolescente e com as pressas implícitas de tais vivências, os caminhos eram cortados a direito. E ninguém dessa idade se lembraria de subir ou descer este ultimo lance de escadas podendo seguir pelo talude de betão existente. Um saltinho e já está! Principalmente se não existirem obstáculos a esse salto, como sejam um corrimão. Que não havia nessa época!
Algures, no interregno da minha ausência, talvez porque a população do bairro envelheceu, talvez pela proximidade da igreja e das suas capelas mortuárias, este corrimão surgiu e deve ter ajudado muita gente. Mas não a mim, pela certa!
Que, de todas as vezes que, recentemente, ali quis passar, embati nele, com o correspondente impropério. Que o corpo queria passar a direito, a memória assim o mandava e o consciente se alheava daquilo que os olhos lhe diziam. Só desta vez, alerta que já estava, e receando um novo embate pouco simpático, já contava com o bem ou maldito corrimão.
Os caminhos velhos não se esquecem! Mas, por favor, não lhes coloquem obstáculos.

Texto e imagem: by me

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