quinta-feira, 15 de maio de 2008

Portas e intervalos


Os comboios que uso diariamente são constituídos por duas unidades quádruplas. Sendo que cada carruagem tem três portas, é fácil de fazer as contas: vinte e quatro portas e sete intervalos entre carruagens.
Assim, a probabilidade de um passageiro distraído no cais ficar com uma separação de carruagem à sua frente quando o comboio se imobiliza é francamente menor que a de ficar com uma porta escancarada para entrar.
Qualquer um que use uma linha suburbana o sabe.
No entanto, Caramba! Cada vez que o comboio pára e alguém fica com a separação à sua frente, reclama e diz que anda cheio de azar e que dia ainda mal começou e toda uma série de protestos e desabafos contra a vida em geral. Mas ninguém, pelo menos que eu tenho conhecimento em primeira-mão ou por ouvir contar, elogia quando fica com a respectiva porta convidativa à sua frente. Ninguém comenta que é um bom sinal, que o dia está a começar bem e que, se continuar assim, será muito bom.
O comum do cidadão só repara, comenta ou dá à evidência o que de mau acontece. Raramente, se alguma vez, o que de bom sucede.
Estou em crer que esta é uma característica não exclusiva dos portugueses, ou mesmo dos europeus. Será generalizada à espécie humana, onde quer que ela se encontre.

Encontramos a mesma atitude generalizada na comunicação social.
Evidencia, conta, relata, demonstra o que de mau vai acontecendo, dentro e fora das fronteiras respectivas, dando um espaço reduzido, se algum, ao que de bom vai sucedendo.
E tanto que assim é que se um alienígena por cá passasse e consultasse os jornais, as rádios ou as TV’s, ou bem que se suicidava ou bem que fugia lá para Alfa Centauro ou qualquer que fosse a sua origem. É que, de acordo com os media, a vida não está um caos ou tragédia. A vida É um caos ou tragédia.
Na política, na economia, nas guerras, nas fomes, nos holocaustos e genocídios, nas tragédias e desastres naturais ou provocados pelo Homem.
E se assim é com os media, pelo menos os ditos generalistas, os que neles ou para eles trabalham têm essa mesma postura. Quer escrevam, quer relatem de viva voz, quer registem as imagens. E as cores dos media são bem mais o vermelho do sangue que o verde de uma qualquer esperança. Porque, a dar crédito no que nos contam, essa já morreu faz muito.

Mas sabemos nós todos que a vida não é composta apenas de tragédias, de fomes, de mortos aos milhares. Tal como no comboio, tanto há de portas como de intervalos entre carruagens. Aliás, há mais de portas que de intervalos. Mas se o Homem comum não repara nisso, porque haveria de reparar o jornalista ou repórter de imagem?

É por isso que estou, regularmente, a protestar contra o World Press Photo.
Não contesto a qualidade das imagens que por lá aparecem. Bem pelo contrário, sei que algumas são de fazer inveja aos melhores foto-reporteres.
O que contesto, antes sim, é a demasiada evidência que é dada ao que de mau acontece, excluindo o que de bom sucede.
Claro que o que é mau tem que ser denunciado, aqueles que vivem na pachorrenta calma das sociedades ocidentais têm que ser confrontados com os desequilíbrios do globo e levados a manifestarem-se em solidariedade. A bem mais que apenas um sentimento ou uma manifestação pública.
Mas talvez cale bem mais fundo nas consciências o contraste de umas e outras vivências, o que de bom e de mau vai acontecendo, que apenas as imagens e os relatos sangrentos e esfomeados.
De tão calejados que estamos que, para fazer efeito, ou bem que as imagens e os relatos são cada vez mais horrorosos, ou então já ninguém lhes liga. Mas se a comparação existir, bem, talvez que o desconforto que ela provoque leve a que nós, os acomodados burgueses europeus e pan-americanos, de facto acordemos e partilhemos o que temos com os demais: comida ou paz!

Quanto ao WPP:
No dia em que ele tiver uma postura deste estilo e, com ele, os media alinharem pelo mesmo diapasão, então estarei na primeira fila para visitar, acompanhado de todos os alunos que então tiver comigo.
Não só para alimentar as estatísticas e, com isso, a mediatização do evento, como para poder mostrar aos jovens que o foto-jornalismo não é apenas o sangue, a tragédia, a desgraça, mas antes que a missão do fotógrafo é o fazer o público pensar mais do que ver.


Texto e imagem: by me (with a phone camera)

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