terça-feira, 27 de outubro de 2015

Na carruagem, na noite



Regra geral, as pessoas sentam-se nos bancos dos comboios. As excepções acontecem quando já não há lugares vagos e há que viajar de pé.
Ou tratando-se de malta nova, que se senta onde calha, no chão, desde que esteja a conviver com amigos.
Outra excepção foi a que assisti hoje, ainda agora.

Chegando anormalmente rápido, num passo miudinho, sentou-se no chão, junto a uma das portas. E concentrou-se anormalmente na leitura de um folheto mais que amarrotado longitudinalmente, de uma grande superfície. Electrodomésticos, pareceu-me.
A magreza do seu corpo, reforçada pela extrema magreza do seu rosto, ainda que escondido por uma farta e cerrada barba negra, junto com a falta de higiene das roupas puídas e coçadas, não dava azo a dúvidas sobre o vício que o consome. Rapidamente.
Um minuto depois, um e meio, não mais, passa outro homem que percorria a carruagem em passo igual. Com igual aspecto, pelagem e higiene, variando apenas na altura: muita.
Parou à sua beira e estendeu-lhe um quase vazio pacote de bolachas. Maria, vi. E digo quase porque pude contar que ainda continha umas três bolachas. Tantas quantas as que ficaram de fora, na mão suja de quem oferecia.
O ruído do comboio e as conversas de jovens estudantes universitárias junto a mim não me permitiram perceber o que o sentado disse, olhando para cima. Mas o movimento dos seus lábios não me deixou enganar: “Obrigado”.
O que estava de pé seguiu o seu caminho, pelas coxias ferroviárias: passo curto e rápido, olhar de medo.
O que estava sentado levantou-se umas duas estações de pois, e saiu. Seria natural sair naquela estação desta linha suburbana. E, ainda que discreto, ia mordiscando uma das bolachas.


É sempre entre os que menos têm e mais dificuldades passam que se encontram os mais generosos actos de partilha.

By me

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