Recomenda-se isto
e todo o resto da obra.
Vivamente
“…
O mais belo
exemplo deste comprometimento, entretanto, está numa foto que Henri Bureau
tirou para a agência Sygma, em Abril de 1974, por ocasião da queda do regime
salazarista em Portugal, e que mostra um informante da PIDE no momento em que
era preso em Lisboa por uma unidade do exercito amotinado. Os soldados fecham
um círculo perfeito ao redor da vítima e o fotógrafo – muito embora invisível –
faz parte do cerco e completa o seu fechamento: isto se mostra na foto através
de uma lacuna que parece quebrar o circulo na sua parte frontal e que
corresponde exactamente ao seu ponto de tomada. Em uma palavra: o fotógrafo era
cúmplice da emboscada e actuou o tempo todo em sintonia com a táctica militar
dos soldados. Nenhuma inocência, nenhuma “objectividade” pode redimi-lo desse
pacto sem o qual não haveria foto nenhuma.
Muito
dificilmente, porém, o espectador se dá conta dessa solidariedade da câmara com
um dos lados do confronto: por estar fora do quadro, num espaço invisível e sem
marca, o ponto de tomada se faz ignorar e o olho anunciador se faz passar por
errático e gratuito, como se o fotógrafo fixasse a cena de forma imprevista e
impensada, a partir de ângulo em que por acaso ele está. Tudo na foto jornalística
parece corroborar em favor desse aparente aleatório: o enquadramento é
apressado e o foco pouco preciso, sintomas de que a foto está sendo tomada em
pleno fogo dos acontecimentos; o quadro aparece, por sua vez, exageradamente
aberto, como o requer a grande angular, objectiva própria para circunstâncias
em que o imprevisto pode acontecer a qualquer momento e não há tempo para
acertar o quadro. Em toda a prática convencional da fotografia, os efeitos
ideológicos do ângulo de tomada não aparecem de forma cristalina, de modo que a
posição da câmara e o lugar ocupado pelo fotógrafo parecem mostrar-se tão
arbitrários que se fazem passar por nulos ou inexistentes. A menos que ocorra
uma reviravolta geral neste estado de coisas e o fotógrafo intrometido perca a
solidariedade do ocupante, de forma a que venha sofrer ele próprio a força das
instancias de poder. Neste caso a câmara perde a sua “objectividade” e o ponto
de mira é ocupado é desvelado porque é para ele – e não mais para antagonistas
confinados no fundo do cubo da cena – que se apontam os fuzis.
…”
“A ilusão
especular” por Arlindo Machado, 2015, Editorial Gustavo Gili
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