sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A ilusão especular



Recomenda-se isto e todo o resto da obra.
Vivamente

“…
O mais belo exemplo deste comprometimento, entretanto, está numa foto que Henri Bureau tirou para a agência Sygma, em Abril de 1974, por ocasião da queda do regime salazarista em Portugal, e que mostra um informante da PIDE no momento em que era preso em Lisboa por uma unidade do exercito amotinado. Os soldados fecham um círculo perfeito ao redor da vítima e o fotógrafo – muito embora invisível – faz parte do cerco e completa o seu fechamento: isto se mostra na foto através de uma lacuna que parece quebrar o circulo na sua parte frontal e que corresponde exactamente ao seu ponto de tomada. Em uma palavra: o fotógrafo era cúmplice da emboscada e actuou o tempo todo em sintonia com a táctica militar dos soldados. Nenhuma inocência, nenhuma “objectividade” pode redimi-lo desse pacto sem o qual não haveria foto nenhuma.
Muito dificilmente, porém, o espectador se dá conta dessa solidariedade da câmara com um dos lados do confronto: por estar fora do quadro, num espaço invisível e sem marca, o ponto de tomada se faz ignorar e o olho anunciador se faz passar por errático e gratuito, como se o fotógrafo fixasse a cena de forma imprevista e impensada, a partir de ângulo em que por acaso ele está. Tudo na foto jornalística parece corroborar em favor desse aparente aleatório: o enquadramento é apressado e o foco pouco preciso, sintomas de que a foto está sendo tomada em pleno fogo dos acontecimentos; o quadro aparece, por sua vez, exageradamente aberto, como o requer a grande angular, objectiva própria para circunstâncias em que o imprevisto pode acontecer a qualquer momento e não há tempo para acertar o quadro. Em toda a prática convencional da fotografia, os efeitos ideológicos do ângulo de tomada não aparecem de forma cristalina, de modo que a posição da câmara e o lugar ocupado pelo fotógrafo parecem mostrar-se tão arbitrários que se fazem passar por nulos ou inexistentes. A menos que ocorra uma reviravolta geral neste estado de coisas e o fotógrafo intrometido perca a solidariedade do ocupante, de forma a que venha sofrer ele próprio a força das instancias de poder. Neste caso a câmara perde a sua “objectividade” e o ponto de mira é ocupado é desvelado porque é para ele – e não mais para antagonistas confinados no fundo do cubo da cena – que se apontam os fuzis.
…”


“A ilusão especular” por Arlindo Machado, 2015, Editorial Gustavo Gili

Sem comentários: