Li, há uns tempos
num blog sobre fotografia, uma frase provocante:
“Todas as imagens
que hoje vemos, especialmente as postadas nos flickrs são todas absolutamente
iguais.”
E concluiu o autor
com uma outra, repleta de ironia:
“Na verdade,
vivemos hoje uma estética flickeriana pós-moderna!”.
Estas duas
afirmações mexem fundo comigo e sobre elas não posso deixar de aqui colocar o
que penso, em concordância e em discordância.
Entenda-se, no
entanto, que tento aqui ser sintético, o que não apenas não é fácil com este
tema como não é uma característica que eu mesmo possua.
Comecemos por
pensar no que o cidadão comum pensa ser um fotógrafo dito “profissional”.
É aquele que, qual
caçador solitário, vai a lugares exóticos ou situações perigosas, e regressa
com troféus sob a forma de fotografias. Ou aquele que priva com as beldades,
aquelas que enchem o olho e que, ainda por cima, lhes diz o que fazerem e como
se exibirem. Ou ainda, é aquele que está onde estão os grandes, os decisores,
os que governam o mundo. É alguém que, por ser fotógrafo, é um privilegiado.
Claro está que
esse tal cidadão comum ignora o quão difícil é aceder-se a alguns lugares, o
quão complicado é conseguirem-se algumas credenciais, o quão violento pode ser
o lidar com alguns seguranças, privados ou não. Ou quanta frustração pode estar
(e em regra está) atrás de cada fotografia de sucesso!
Assim, e tal como
sucede com as princesas, desportistas e gente do mundo do espectáculo e cinema,
há uma tentativa de imitar os ídolos.
Acontece, porém,
que fazer uma imagem é fácil, cada vez mais fácil. Uma câmara de média gama não
custa uma fortuna, um computador para pós-tratamento também não e sabemos os
que são programas pirateados, Desta forma, cada disparo em digital é a custo
zero, depois de adquiridos os equipamentos de base. E a luz e o mundo estão aí
para serem captados. Cada um à sua medida pode imitar os seus ídolos.
Por outro lado, o
acesso à divulgação da fotografia era, até há uns tempos, difícil. Implicava
arranjar uma galeria (e respectivo galerista) que estivesse na disposição de
disponibilizar tempo e espaço ou uma revista ou jornal (com o respectivo editor
fotográfico) que estive disposto a arriscar publicar.
Para além de os
espaços físicos ou os de imprensa não serem assim tantos quanto isso, há ainda
que passar pelos crivos dos galeristas, que decidem o que se pode ou não vender
ou expor, o que é “arte” ou não é, bem como os editores fotográficos dos
periódicos, que decidem se as imagens estão ou não em consonância com a linha
editorial em causa ou com os artigos a ilustrar.
Hoje, os únicos
filtros existentes são, ou podem ser, apenas as decisões dos fotógrafos, o
ter-se acesso à web e uma conta num qualquer flickr. As escolhas do que se
publica são, em exclusivo, dos autores dos trabalhos, sem qualquer outro
aconselhamento ou decisão. O que faz com que as escolhas do que é colocado
on-line se baseiem nos gostos e capacidades dos fotógrafos, seja qual for o seu
“calibre”, e não nas opiniões de “lentes” e comerciantes, cuja opinião depende
do seu conservadorismo, das modas estéticas vigentes e da capacidade de venda
dos trabalhos. Sejam estes bons ou maus.
Mas também devemos
considerar a quantidade de imagens que se produzem e os motivos de tal
produção. É que, para além do custo zero e da facilidade de exibição, existe a
efemeridade de cada fotografia.
Até há alguns
anos, o consumo de fotografia fazia-se nas galerias e museus ou nos livros e
revistas. E ia-se a exposições com o intuito de degustar o que lá estivesse, ou
comprava-se a publicação com o mesmo objectivo. E se uma visita a um museu ou
galeria fica na memória do visitante, as publicações ficam nas caixas ou
estantes, sempre disponíveis para uma revisitação ou consulta. Por necessidade
ou pelo simples prazer de ver trabalhos de que gostamos. Ou, melhor ainda,
passear numa livraria, encontrar “velhos amigos” ou “ novos conhecidos” nas
prateleiras e ter o prazer de as levar para casa e com eles passar uns bons
momentos. Ou de com eles aprender algo mais.
Em alternativa, na
web gastam-se uns escassos segundos a ver uma imagem, para logo de seguida se
passar à seguinte, que são muitas por ali e há sempre outras para serem vistas.
E, quantas mais são vistas, menos na memória se nos ficam. Meia hora depois de
se iniciar esse périplo, de quantas nos recordamos? Ou do nome dos autores?
E se enquanto
consumidores de imagens o sabemos, enquanto produtores de imagens igualmente. E
para que o trabalho de cada um, seja produtor comum ou amador ou um “expert” ou
profissional, há que apresentar quantidade, por vezes mais que qualidade.
Ser-se o último a publicar na web, no blog, no flickr (seja ele qual for), por
forma a que essas imagens fiquem na página de entrada ou nos favoritos dos
visitantes para que, de algum modo, fiquem em evidência. E serem visitadas ou
vistas, tão assiduamente que fiquem na memória e se evidenciem na mol de
fotografias vistas.
Sabemos também
que, em regra, a quantidade é inimiga da qualidade. E o fotógrafo comum acaba
por se repetir, ou repetir as fórmulas que conhece como eficazes na comunicação
fotográfica, nesse seu anseio de ser conhecido e visto.
Para alicerçar a
expressão bombástica “No flickr as fotografias são todas iguais”, devemos
considerar também nós mesmos, os que vemos essas tais fotografias.
De tantas imagens
que vemos, mesmo que todas difiram em estéticas, técnicas e conceitos, acabamos
por ter uma noção do todo e não das partes e, porque somos humanos e
preguiçosos, um padrão no que vemos. Um padrão de heterogeneidade do qual é
difícil de sair. Do qual é difícil de sairmos!
Por muito que nós
mesmos possamos saber da matéria, tanto de estética como de técnica ou ainda de
semiótica, findo um pedaço de “surfar” nos flickrs, acabamos por ficar com uma
espécie de névoa, de criar padrões de análise que nos conduzem,
inexoravelmente, a classificações minimalistas e uniformes. E ficarmos com essa
tal ideia de que “no flickr as fotografias são todas iguais”.
Mas para fazermos
essa análise das fotografias do flickr, ou de quaisquer outras fotografias ou
de qualquer outra forma de expressão pessoal, haverá que abandonar os nossos
próprios conceitos de estética e de qualidade e analisar os conceitos inerentes
aos autores, bem assim como os contextos em que se inserem. À revelia do que
afirma Popper, no seu excelso “Mito do contexto”.
Os fotógrafos que
nos ficam na memória são, muito naturalmente, os muito bons, alguns mesmo
génios. E a genialidade não se encontra nas farmácias ou na foz de um rio. É
aquilo que alguns, poucos, têm e que muitos tentam imitar. E são esses muitos
que enchem as páginas web. E que se esforçam por fazer melhor e/ou diferente as
fotografias que apresentam. Sujeitos às limitações interiores que possuem. E às
limitações que a vida lhes impõe: Não saem dos seus bairros, cidades, países,
fotografam fora das horas de trabalho ou quando não há deveres familiares ou
escolares a cumprir.
Ou, para ir ainda
mais longe, estão formatados pela cultura em que se inserem, quer seja a
apreendida nas publicações impressas, quer seja a apreendida nas publicações
electrónicas. Ou ainda na TV e no cinema. Como seja a ditadura do número de
ouro ou a imposição do espaço útil com quatro cantos em ângulo recto.
Para já não falar
nas questões afectas aos respectivos países e regiões do globo. Com as suas cores
saturadas, composições e assuntos mais agressivos, constatáveis nos climas
quentes, ou as cores mais pastel e assuntos e estéticas mais tranquilos,
visíveis nos autores de países mais frios. Ou a existência ou ausência de
estabilidade sócio-económico-política que nesses países se possa viver.
Até porque sabemos
que a inovação advém da inquietude e esta tanto pode ser endógena como exógena!
Não se pode deixar
de parte a questão da facilidade da produção fotográfica. Se hoje basta ter a
câmara, fazer click e os automatismos de fabricante fazem quase tudo o resto,
se no photoshop a tentativa e erro são inconsequentes que os originais não se
perdem ou destroem, assim não era até há algum tempo. O grau de conhecimento
sobre películas, exposição, químicos e afins era tal que só quem a tal
actividade se dedicava obtinha satisfação no seu trabalho. Por outro lado, o
custo de cada trabalho, aliado ao trabalho que cada imagem implicava eram de
tal monta, bem como o tempo que mediava entre o fotografar e o ver a
fotografia, que o simples premir do obturador obrigava à existência de muitas
certezas nas decisões e gestos. E a uma razoável antevisão mental do resultado
final.
Obrigavam a pensar
a fotografia e no acto fotográfico. O que hoje é incomum de encontrar.
Claro que, no meio
de todas estas considerações, para que a expressão ”No flickr todas as
fotografias são iguais”, há ainda que pensar no que é o flickr. Ou o que são os
espaços de publicação de fotografias na web, tenham o nome que tiverem.
Muito frequentemente,
e bem mais do que se poderia esperar ou gostar, estes espaços são mais pontos
de encontro social que galerias virtuais de fotografia. Usando a imagem,
fotográfica ou não, busca-se reconhecimento de capacidades, pares no
pensamento, um “lugar ao sol” ou tão só a quebra de solidão.
Sintomático de tal
são os comentários deixados nas imagens publicadas e quem os deixa. Uma grande
maioria é do género “Gostei!” ou equivalente e escritos por quem constar na
lista de favoritos de quem é comentado. O número de visitas ao espaço de cada
um depende, sem sombra de dúvida, do número de comentários feitos a outros e da
quantidade de “adicionados”. As galerias virtuais são vistas em circuito
fechado, criando-se grupos de interesse que não dependem da qualidade das
imagens expostas mas tão só da assiduidade com que se comenta e se publicam
novas fotografias. E, uma vez mais, a quantidade é sobrevalorizada em relação à
qualidade.
Nestas
circunstâncias, é natural vir a constatar as semelhanças dos trabalhos
exibidos. As temáticas ficam restritas ao grupo, as estéticas também, para já
não falar nas linguagens de imagem empregues.
Deverá ainda
considerar-se um outro aspecto, vital do meu ponto de vista:
A esmagadora
maioria das fotografias na web são produzidas por gente jovem. Porque é moda o
uso das tecnologias de informação; porque é moda o uso da fotografia; porque é
uma forma de comunicação no grupo a que se pertence ou se almeja pertencer.
Acontece, porém,
que o órgão da visão é o ultimo a ficar completo. Em termos de maturidade
fisiológica e em termos de maturidade de percepção. Ao invés do que acontece
com a audição, a primeira a surgir, a que mais cedo se completa. E a
comunicação sonora é a que mais cedo se pratica, até porque dispensa o contacto
físico ou o uso de qualquer instrumento. Dir-se-ia que é a mais “animal”.
E porque a visão
mais tarde se completa e mais complexa é, o seu uso exige mais prática, mais
maturação do indivíduo, fruto das experiências e da vivência.
Por isso mesmo, é
muito mais comum encontrar-se quem tenha sucesso na comunicação sonora ainda
jovem, ao invés da comunicação visual, seja fotografia, pintura, cinema ou
teatro, onde esse sucesso acontece bem mais tarde na vida.
Com todo este
“discurso” sobre a eventual normalização das fotografias no flickr, não estou,
de forma alguma, a retirar importância ou qualidade ao que ali é exposto. Tanto
uma como outra, como em qualquer forma de expressão pessoal, devem ser
avaliadas em função de quem as faz, bem mais que em função das regras ou modas
em vigor.
Ao longo dos anos
em que estive no papel de professor de fotografia e vídeo (prefiro usar o termo
“ajudante de aprendizagem”!), a avaliação dos trabalhos que me eram
apresentados era feita em função dos objectivos que aluno tinha com cada trabalho
e em função da evolução que cada um apresentava ao longo do tempo. Considerando
a mensagem que se pretendia transmitir e a eficácia com que ela era recebida no
grupo a que se destinava.
Que uma fotografia
pode ser particularmente boa, eficaz na comunicação e original em forma e
conteúdo e ser, ao mesmo tempo, pouco ou nada apreciada fora do contexto a que
se destina. Grupo etário, grupo social, grupo cultural. Quem quer que esteja
fora dele e olhe para o conjunto dos trabalhos apresentados, verá uniformidade
no conjunto, poucas diferenças ou originalidades. E cada uma ser igual às
demais. Mas, dentro do grupo de destino, cada uma poderá ser a melhor, a mais
comunicativa, a que mais sentimentos ou mensagens fará passar.
Caberá ao
fotógrafo em causa, aprendiz numa escola, freelancer, assalariado de uma
publicação ou utente assíduo de um qualquer flickr, decidir se os trabalhos que
apresenta se destinam ao publico em geral se a um grupo restrito com o qual se
identifique.
E caberá a quem as
analise, interpretar esses destinos e saber avaliar em função deles e não
apenas com base nas regras e códigos aceites pela maioria. Para já não referir
a questão de essa “maioria” ser ocidental, do médio-oriente ou do
extremo-oriente. Que, para além de uma avaliação incompleta e,
consequentemente, incorrecta, será castrante para quem a receba. E castrante na
criatividade e capacidade de comunicação.
No meio de tudo
isto onde fica a arte?
Tenho que admitir
que eu mesmo não sei, até porque não sei o que é “Arte”, fotográfica ou outra.
Mas, sobre esta
questão apenas, muito haveria que dizer e já aqui não tenho espaço nem o leitor
paciência.
Para finalizar,
repito que tudo o acima escrito não passa de uma síntese sobre a matéria. E, a
par com a criatividade, o poder de síntese não é uma das minhas qualidades.
Espero, no
entanto, ter-me feito entender a quem por aqui passar e tenha a coragem de tudo
isto ler.
By me
Sem comentários:
Enviar um comentário